quinta-feira, 20 de maio de 2010

O Que o Serviço Social
Defende

Serviço Social brasileiro realiza a Campanha
Lutar por Direitos, Romper com
a Desigualdade como forma de protesto
e indignação diante da barbárie capitalista
que reitera a desigualdade social, e defende
o fortalecimento dos movimentos sociais organizados
em defesa dos direitos da classe
trabalhadora e de uma sociedade livre e
emancipada. Esses são nossos compromissos
éticos, teóricos, políticos e profissionais.
As desigualdades econômicas e sociais entre
países “ricos” e “pobres” se agudizam nesse
momento de crise. A especulação financeira
vem transformando a sociedade em um grande
cassino, sendo esta a característica mais marcante
do mercado de capitais, e gerando grandes
transferências de capital ao sistema bancário,
o que detonou a crise atual, comparável
apenas à Grande Crise de 1929, e que ainda
está longe de ser superada. Tais condições de
reprodução material e das relações sociais no
capitalismo contemporâneo têm profundos impactos
na crescente e desigual repartição da riqueza
mundialmente produzida, já que os 20%
mais ricos do mundo ficam com mais de 80%
do PIB mundial e na ampliação da pobreza, já
que o número de pobres cresce ao ritmo do
crescimento da população (2% ao ano), o que
faz com que 1 bilhão e meio de seres humanos
vivam em condição de mera sobrevivência.




A luta do Serviço Social por direitos, trabalho
e socialização da riqueza no Brasil é uma luta
contra a “economia política da iniqüidade” e
constitui uma mediação importante na luta histórica
pela emancipação humana, pois os direitos,
na sociabilidade capitalista, se inserem em
um processo complexo e contraditório de produção
e reprodução das relações econômicas
e sociais sob a égide do capital e da mercantilização
das relações sociais. Defendemos a
luta pela democratização da política e garantia
dos direitos como estratégia de ganhos e acúmulo
de forças da classe trabalhadora, e como
mediação necessária e inadiável no percurso
de construção de uma sociedade emancipada.
Por isso, com a campanha Lutar por Direitos,
Romper com a Desigualdade, queremos
provocar reflexão e indignação com a barbárie
que se reproduz cotidianamente em nosso
país, e mobilizar a sociedade para defender:


- A socialização da política e o fortalecimento de instituições verdadeiramente democráticas,
que assegurem a organização autônoma da classe trabalhadora e o fortalecimento dos
movimentos sociais;
- Valores éticos em defesa do coletivo e da equidade;
- Posicionamento contrário a toda forma de exploração, opressão e violência contra a mulher,
crianças e adolescentes, pessoas idosas, pessoas com deficiência e contra toda forma
de expressão de homofobia e restrição da liberdade de orientação sexual;
- Uma política econômica a serviço do crescimento e da redistribuição da riqueza socialmente
produzida, e de uma política tributária redistributiva, que onere mais o capital e
menos o trabalho: no Brasil, os tributos incidem apenas 4% sobre o patrimônio, 29% sobre
a renda e 67% sobre o consumo. Nos países da OCDE, ao contrário, os impostos sobre o
consumo representam 32,1% em média, enquanto o imposto sobre a renda corresponde a
35,4%; o acréscimo da carga tributária sobre quem ganha até 2 salários mínimos foi de 20%
entre 1994 e 2004 e de apenas 8% para quem ganha acima de 30 salários mínimos;
- Uma ampla reforma agrária para reverter a perversa estrutura fundiária, que hoje concentra
enormemente as propriedades rurais: no Brasil, 2.214.983 minifúndios (até 1 módulo
fiscal) dispõem de 7,5% da área rural, enquanto apenas 104.744 grandes propriedades
(de 15 a 600 módulos fiscais) concentram 58,1%;
- O direito ao trabalho com qualidade e emprego para todos, sem discriminação: hoje, a
taxa média de desemprego nas regiões metropolitanas é de 20,21% entre os negros e de
15,35% entre os não negros; é de 21% entre as mulheres e 15,1% entre os homens;
- A luta pela ampliação dos salários e rendimentos do trabalho, pois o valor do salário mínimo,
que hoje corresponde a apenas U$ 245, está longe de assegurar a garantia das necessidades
básicas. Ele deveria corresponder a aproximadamente U$ 1.000, segundo o Dieese;
- A luta pela universalização da seguridade social, com garantia de saúde pública para todos
e ampliação da cobertura da previdência social, pois a elevada informalidade nas relações
de emprego faz com que 45.802.229 trabalhadores ocupados (47,69% da PEA) não contribuam
para a seguridade social, e, portanto, não tenham acesso aos direitos previdenciários.
Essa luta também requer ampliar o valor dos benefícios, pois 80,31% dos 24.593.390 benefícios
estão abaixo de 2 SM, ou seja, abaixo de U$ 490; A universalização da seguridade também
pressupõe defender a política de assistência como direito social, e não como filantropia
e muito menos como substitutivo paliativo do trabalho e do emprego;
- A luta em defesa da educação laica, pública, presencial e universal em todos os níveis,
para reverter o quadro de reduzido acesso ao ensino superior. No Brasil, o percentual de
jovens com idade entre 18-24 anos inseridos no ensino superior é de apenas 21%, enquanto
na Argentina é de 60%.


www.cressro.org.br
18 DE MAIO - Dia Nacional de Combate ao Abuso e Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes

18 de maio é a data em que Araceli Cabrera Crespo, de nove anos incompletos, desapareceu da escola onde estudava para nunca mais ser vista com vida. A menina foi estupidamente martirizada. Araceli foi espancada, estuprada, drogada e morta numa orgia de drogas e sexo. Seu corpo, o rosto principalmente, foi desfigurado com ácido. Seis dias depois do massacre, o corpo foi encontrado num terreno baldio, próximo ao centro da cidade de Vitória, Espírito Santo. Seu martírio significou tanto que esta data se transformou no “Dia Nacional de Combate ao Abuso e Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes”.

Por uma Vida sem Violência...

“FAÇA BONITO. PROTEJA NOSSAS CRIANÇAS E ADOLESCENTES”.

ESQUECER É PERMITIR, LEMBRAR É COMBATER!!!






domingo, 16 de maio de 2010

PARECER TÉCNICO

Assunto: Metodologia "Depoimento sem Dano", ou "Depoimento com Redução de Danos".
Autora: Eunice Teresinha Fávero

1. Introdução

Este trabalho visa atender solicitação do Conselho Federal de Serviço Social

(CFESS) de Parecer Técnico sobre o que vem sendo denominado de "metodologia do Depoimento sem Dano" – que substitui a audiência com o juiz da criança e/ou adolescente vítima de abuso sexual pela inquirição2

por um profissional ou uma "pessoa de confiança"

(geralmente, um assistente social ou um psicólogo), já desenvolvida pelo Tribunal de Justiça

do Rio Grande do Sul desde 2003, em Goiás mais recentemente (com apoio inicial da

Universidade Católica de Goiás), e que poderá vir a ser adotada por outros Estados

brasileiros em breve, entre eles, Rio de Janeiro, São Paulo e Rondônia. Tal "inquirição"

acontece em uma sala separada da sala de audiências, interligada a esta por vídeo, áudio e

ponto eletrônico (podendo ser também uma sala espelhada, unidirecional), por meio do qual

o juiz transmite questões ao profissional "intérprete" (incluindo as da acusação e da defesa),

que as retransmite à criança e/ou adolescente (procedimentos e objetivos detalhados mais à frente).

A solicitação decorre de preocupação com o que o CFESS considera "questões

problemáticas envolvidas nesta metodologia, principalmente no que diz respeito aos aspectos éticos e técnicos do trabalho do assistente social que porventura tenha que participar desse tipo de inquirição testemunhal, no âmbito do Sistema de Justiça brasileiro, e também possíveis violações aos preceitos de proteção da criança e do adolescente previstos no Estatuto da Criança e do Adolescente e no marco legal em geral, que regula os direitos humanos"3
.

A busca de material para fundamentar este parecer, mais especificamente em

relação a análises críticas sobre a operacionalização do trabalho como vem sendo proposto,

indicou relativa ausência de debates e sistematização de conhecimentos quanto à temática,

1

Assistente social do TJSP (atualmente em licença); mestre e doutora em Serviço Social; professora na

UNICSUL/SP.

2

Termo utilizado em projetos que tratam do DSD.

3

Cf. CFESS. Ofício Circular nº 626/2007.



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2

em especial entre os assistentes sociais, ainda que seja significativa sua participação em

estudos/pesquisas sobre a questão da violência doméstica contra crianças e adolescentes, e

tal realidade permeie o cotidiano de trabalho desses profissionais, principalmente nas áreas

da saúde e na judiciária.

Também revelou que a metodologia "Depoimento Sem Dano", ou DSD, aparece
como a "grande mágica", possível de solucionar as dificuldades de magistrados, promotores

e advogados em conversar com crianças e adolescentes, em ouvi-los, muito possivelmente

em razão da falta de uma base formativa para tal – tanto na graduação em Direito quanto na

capacitação para o exercício de suas funções –, bem como por causa da dificuldade de se

estabelecer limites jurídicos que impeçam a "revitimização" pela exposição a diversas

audiências/oitivas, ou em tratar questões sociais para além da positividade da lei.

Nesse sentido, o próprio texto do Projeto de Lei nº 7.524/06

4

, que objetiva incorporar

o DSD ao Código de Processo Penal e alterar o capítulo do Estatuto da Criança e do

Adolescente (ECA) que trata do "Acesso à Justiça", justifica sua necessidade para a

produção do que pode ser a única prova possível contra o acusado, dentre outros motivos,

em virtude de que tal produção de prova "(...) não é tarefa fácil no meio forense, eis que a

capacitação dos agentes que nele atuam – Juízes, Promotores de Justiça e Advogados –

para inquirirem crianças e adolescentes traumatizados, quase que sempre se mostra

inexistente e insuficiente, terminando por revitimizar as crianças e adolescentes agredidas,

podendo nelas causar um dano psíquico secundário, o qual em alguns casos pode ser maior que o dano primário, aquele causado pelo agressor".
Sabe-se que o tema é complexo: envolve tabus relativos a sexualidade, incesto,

violência de diversos graus; confronta direitos, cultura, leis. Talvez por isso esteja sendo

objeto de preocupação, inclusive em detrimento da mesma atenção a situações que

envolvem o recurso ao Judiciário em razão da pobreza – as quais vêm se ampliando

significativamente

5

.

Tendo em vista essa complexidade, desenvolvemos neste trabalho o que pode ser

considerado uma primeira aproximação à temática, do ponto de vista do Serviço Social,

contextualizando a questão da violência contra crianças e adolescentes, traçando uma breve

4

De autoria da deputada federal Maria do Rosário (PT-RS), atualmente tramitando no Senado Federal: PLC nº

35/2007, na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania, tendo como relatora a senadora Lúcia Vânia

(distribuído em 05.12.2007).

5

Vários estudos vêm sendo desenvolvidos a respeito. Ver, dentre eles: FÁVERO, E. T.; TOLOSA JORGE, M. R.;

MELÃO, M. J. Serviço social e psicologia no Judiciário: construindo saberes, conquistando direitos. São Paulo:

Cortez, 2005.



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3

apresentação de trâmites processuais que envolvem a aplicação da legislação penal e

formas de ouvir a criança, o que vêm a ser os projetos de DSD, experiências semelhantes

em alguns países, repercussões da proposta, e algumas análises sobre a pertinência ou não

da participação do assistente social na operacionalização de projetos dessa natureza,

levando em conta o projeto ético-político da profissão na atualidade

6

. Trata-se de trabalho

privilegiadamente informativo e secundariamente analítico e conclusivo, por causa da

necessidade de aprofundamento do debate e do conhecimento a respeito, bem como do

curto espaço de tempo disponível para sua elaboração.

2. Violência Doméstica/Abuso Sexual contra Crianças e Adolescentes

O objetivo não é aprofundar o tema da violência/abuso sexual, mas apresentar

elementos importantes que possibilitem o entendimento da dinâmica do abuso e da dinâmica

da denúncia, bem como os trâmites da fase processual penal, de maneira a possibilitar a

compreensão da proposta do DSD, e refletir sobre a atuação/participação do assistente

social nessa "metodologia".

Conforme Chauí (1998), em análise sobre Ética e Violência, etimologicamente,

violência vem do latim vis, força, e significa

7

: "Tudo o que age usando a força para ir contra a

natureza de algum ser (...); todo ato de força contra a espontaneidade, a vontade e a

liberdade de alguém (é coagir, constranger, torturar, brutalizar); todo ato de violação da

natureza de alguém ou de alguma coisa valorizada positivamente por uma sociedade; todo

ato de transgressão contra aquelas coisas e ações que alguém ou uma sociedade define

como justas e como um direito. Conseqüentemente, violência é um ato de brutalidade,

sevícia e abuso físico e/ou psíquico contra alguém e caracteriza relações intersubjetivas e

sociais definidas pela opressão, intimidação, pelo medo e pelo terror. A violência se opõe à

ética porque trata seres racionais e sensíveis, dotados de linguagem e de liberdade como se

fossem coisas, isto é, irracionais, insensíveis, mudos, inertes ou passivos. Na medida em

que a ética é inseparável da figura do sujeito racional, voluntário, livre e responsável, tratá-lo

como se fosse desprovido de razão, vontade, liberdade e responsabilidade é tratá-lo não

como humano e sim como coisa, fazendo-lhe violência nos cinco sentidos em que demos a

esta palavra."

6

Para tal, foi de fundamental importância o conteúdo do Ofício Circular CFESS nº 93 /2007, encaminhado aos

Conselhos Regionais de Serviço Social.

7

Optou-se por não destacar na página as citações de outros autores (com recuo, tamanho da fonte etc.).



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4

A definição de Chauí possibilita uma visão ampla e dinâmica do fenômeno; a

violência "(...) se manifesta como o exercício da dominação de um ser sobre o outro, e tem

como conseqüência maior a violação da humanidade deste – e, indo além, do próprio

agressor" (SILVA, 2005, p. 16).

Tomamos este conceito como parâmetro para a análise da temática em questão, no

intuito de pensar as múltiplas faces da violência que podem envolver uma criança e/ou

adolescente, em especial quando vítima de abuso sexual.

Para tratar especificamente da violência doméstica ou violência intrafamiliar,

reportamo-nos a Azevedo Guerra, Deslandes, Faleiros, Souza, reconhecidos estudiosos e

participantes de movimentos que visam enfrentar a questão, bem como à abordagem dada

pelo Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito de Crianças e Adolescentes

à Convivência Familiar e Comunitária (PNCFC).

Azevedo Guerra, com base no paradigma da proteção integral, define a violência

doméstica contra crianças e adolescentes como "Todo ato ou omissão praticado por pais,

parentes ou responsáveis contra crianças e adolescentes que – sendo capaz de causar dano

físico, sexual e/ou psicológico à vítima – implica, de um lado, numa transgressão de

poder/dever de proteção do adulto e, de outro, numa coisificação da infância, isto é, numa

negação do direito que crianças e adolescentes têm de ser tratados como sujeitos e pessoas

em condições peculiares de desenvolvimento" (1998, p. 32).

A autora aponta ainda que a violência doméstica tem relação com a violência

estrutural presente em uma sociedade desigual. Todavia, considera que "tem outros

determinantes que não apenas os estruturais. É um tipo de violência que permeia todas as classes sociais como violência de natureza interpessoal
8

" (ibid., p. 31).

Deslandes, em trabalho que aborda a prevenção da violência, relaciona tal fenômeno

especialmente com a cultura, apontando que "os maus-tratos contra a criança e o

adolescente podem ser praticados pela omissão, supressão e transgressão dos seus

direitos, então definidos por convenções legais ou normas culturais. A definição do que seja

uma prática abusiva passa sempre por uma negociação entre a cultura, a ciência e os

movimentos sociais" (1994, p. 13).

Os maus-tratos e/ou a violência contra crianças e adolescentes acontecem

privilegiadamente no âmbito do ambiente familiar, todavia, também em ambiente

8

Itálico, por Azevedo Guerra.



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5

extrafamiliar, em especial a violência sexual. A violência contra crianças e adolescentes se

materializa de diversas maneiras, sendo geralmente identificada por meio da violência física,

psicológica, sexual, negligência e, muitas vezes, reunindo todas essas expressões. Vários

estudos demonstram que os maus-tratos contra crianças e adolescentes acontecem desde

os primórdios e ao longo da história da humanidade, e em todos os segmentos sociais,

tendo, em sua gênese, o poder absoluto do adulto sobre a criança, dos pais sobre os filhos

(especialmente do pai, por personificar na cultura ocidental patriarcal a chefia da família, à

qual filhos e mulheres deviam obediência), ou do mais forte sobre o mais fraco.

Na contemporaneidade, mesmo com a limitação posta pelo Estado aos direitos e

poderes dos pais sobre os filhos em nossa sociedade, a violência contra a criança e o

adolescente tem se manifestado com freqüência em índices acentuados, sendo suas formas

mais comuns, conforme Deslandes (1994, p. 13-17):

– violência física (ou abuso físico): refere-se a "qualquer ação, única ou repetida, não

acidental (ou intencional), cometida por um agente agressor adulto (ou mais velho que a

criança ou adolescente), que lhes provoque dano físico. O dano provocado pelo ato abusivo
pode variar de lesão leve a conseqüências extremas como a morte";

– violência psicológica (ou abuso psicológico): trata-se da "interferência negativa do adulto

(ou pessoa mais velha) sobre a consciência social da criança, produzindo um padrão de

comportamento destrutivo". Suas formas mais praticadas são: "1. a rejeição: não-

reconhecimento de seu valor nem da legitimidade de suas necessidades; 2. isolamento:

afastando-a do convício com pessoas de sua idade, amigos etc.; 3. aterrorrização:

agressões verbais, com instauração de clima de medo; 4. ignorar: ausência de estímulo ao

crescimento emocional e intelectual; 5. corromper: indução ao uso de drogas, ao crime, à

prostituição; 6. produção de expectativas irreais ou extremadas exigências sobre seu

rendimento (escolar, intelectual, esportivo)";

– negligência: caracteriza-se por "privar a criança de algo de que ela necessita, quando isso

é essencial ao seu desenvolvimento sadio. Pode significar omissão em termos de cuidados

básicos como: privação de medicamentos, alimentos, ausência de proteção contra

inclemências do meio (frio, calor)". Conforme a autora, trata-se de abuso de difícil

identificação, na medida em que é difícil diferenciar privações decorrentes da precariedade

da condição socioeconômica da "atuação voluntária dos responsáveis";

– violência sexual (ou abuso sexual): refere-se a "todo ato ou jogo sexual, relação

heterossexual ou homossexual cujo agressor esteja em estágio de desenvolvimento

psicossexual mais adiantado que a criança ou o adolescente. Tem por intenção estimulá-la



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6

sexualmente ou utilizá-la para obter satisfação sexual. Essas práticas eróticas e sexuais são

impostas à criança ou ao adolescente pela violência física, ameaças ou indução de sua

vontade. Podem variar desde atos em que não existam contato sexual (voyeurismo,

exibicionismo), aos diferentes tipos de atos com contato sexual sem penetração (sexo oral,
intercurso interfemural) ou com penetração (digital, com objetos, intercurso genital ou anal).

Engloba ainda a situação de exploração sexual visando lucros como prostituição e

pornografia. (...) Os agentes agressores mais freqüentes são os pais, padrastos, parentes ou

pessoa que tem proximidade com a criança e o adolescente abusado. Podem ser vizinhos

ou outras pessoas que exerçam alguma influência sobre ela ou desfrutam da confiança de

seus pais e parentes. Por vezes o agressor é um adolescente. A mãe muito raramente

aparece como agressora nesse tipo de abuso, mas é comum sua participação ‘passiva’,

‘consentindo’ silenciosamente, constrangida pelo medo da desestruturação da unidade

familiar ou por temor às ameaças do seu cônjuge".

Faleiros, em estudo que coordenou, refere que "As práticas de violência sexual

interpessoal e comercial contra crianças e adolescentes são uma violação de seus direitos

humanos e sexuais, e dos direitos particulares de pessoa em desenvolvimento. Além de

violação à integridade física e psicológica, ao respeito, à dignidade, à sexualidade

responsável e protegida, é violado o direito ao processo de desenvolvimento físico,

psicológico, moral e sexual sadios. A violência sexual na família é uma violação ao direito a

uma convivência familiar protetora. No mercado do sexo, além dos anteriormente

mencionados, são violados os direitos de não ser explorado e o de não trabalhar em

condições indignas, perigosas e estigmatizantes. Ética, cultural e socialmente, a violência

sexual contra crianças e adolescentes é uma violação de direitos humanos universais, de

regras sociais e familiares das sociedades em que ocorre. É, portanto, uma ultrapassagem

dos limites humanos, legais, culturais, sociais, físicos, psicológicos. Trata-se de uma

transgressão e neste sentido é um crime, ou seja, é o uso delituoso, delinqüente, criminoso e

inumano da sexualidade da criança e do adolescente" (1998, p. 9).

Na atualidade, vêm sendo denunciados também, com relativa freqüência, os crimes

sexuais contra crianças e adolescentes por meio da Internet, como pornografia e pedofilia, e

ainda a prostituição infantil, o turismo sexual e o tráfico de crianças e adolescentes com fins

de exploração sexual, os quais geralmente envolvem interesses econômicos, financeiros e

comerciais.



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7

O PNCFC (2006) aborda a questão da violência doméstica contra crianças e

adolescentes considerando sua complexidade e multideterminação, justificando a

necessidade de políticas sociais eficazes para atendimento. Recorrendo a conceito utilizado

por Veronese e Costa (2006),

9

explica que a "violência doméstica ou intrafamiliar é um

fenômeno complexo e multideterminado em que podem interagir e potencializar-se

mutuamente características pessoais do agressor, conflitos relacionais e, por vezes,

transgeracionais, fatores relacionados ao contexto sócio-econômico da família e elementos

da cultura. Isso explica o fato da violência doméstica não ser exclusiva de uma classe

desfavorecida, perpassando indistintamente todos os estratos sociais. Ela acontece no

espaço privado, na assimetria das micro-relações de poder estabelecidas entre os membros

da família, e abrange a violência física, a violência psicológica e a violência sexual, podendo

acarretar seqüelas gravíssimas e até a morte da criança ou do adolescente". Nesta

conceituação, assinala a gravidade do fenômeno, situando-o no mesmo plano da violência

urbana e da violência estrutural, o que exige a urgente "necessidade de preveni-lo e

enfrentá-lo, em todas as suas facetas e gradações". Por isso, lembra "que condições de vida

tais como pobreza, desemprego, exposição à violência urbana, situações não assistidas de

dependência química ou de transtorno mental, violência de gênero e outras, embora não

possam ser tomadas como causas de violência contra a criança e o adolescente, podem

contribuir para a sua emergência no seio das relações familiares" (PNCFC, 2006, p. 36). Daí,

conforme aponta, a necessidade de eficazes políticas sociais para atendimento.

Marli Palma de Souza (2004, p. 1)

10

, em estudo que busca mapear "os contornos dos

serviços de proteção a crianças e adolescentes que sofrem violência no âmbito familiar",

assinala que o crescente número de denúncias que envolvem esse tipo de violência tem feito

com que o estabelecimento de diagnóstico ocupe "significativa parcela de tempo dos

profissionais envolvidos, em detrimento das ações protetoras", o que tem gerado "contextos

que não permitem que os usuários percebam os serviços como apoio e ajuda para rever e

questionar alguns atos das famílias, impedir que se repitam através de uma proteção que

não seja desqualificadora das funções familiares, mas capaz de preservar e resgatar

potencialidades das práticas familiares cotidianas" (p. 11).

Continuando a análise, considera recomendável que a violência contra a criança e o

adolescente seja vista "num contexto de necessidades mais amplo". Explicando que,

9

VERONESE, J. R. P.; COSTA, M. M. M. Violência doméstica: quando a vítima é criança ou adolescente – uma

leitura interdisciplinar. Florianópolis: OAB/SC Editora, 2006, p. 101-102.

10

Assistente social. Professora da UFSC.



Page 8


8

geralmente, esse tipo de violação de direitos "constitui o problema que mais chama atenção

em meio a tantos outros que a família enfrenta", pondera que é importante que se avalie "a

necessidade das famílias em relação às políticas públicas, quer seja de habitação, saúde,

educação, quer de mecanismos legais e jurídicos capazes de garantir direitos. Se a família,

do ponto de vista legal e social, deve oferecer cuidado e proteção aos seus filhos, é preciso

criar condições que lhe permitam desempenhar tais papéis", ou seja, é preciso que seus

direitos sociais sejam assegurados, de maneira a que tenha maiores possibilidades de

fazerem valer seus direitos fundamentais (Souza, 2004, p. 11).

Nesse sentido, os Serviços de Proteção Social às Crianças e aos Adolescentes

Vítimas de Violência, Abuso e Exploração Sexual e a Suas Famílias (Combate ao abuso e à

exploração sexual de crianças e adolescentes – Programa Sentinela), inseridos no Plano

Nacional de Enfrentamento da Violência Sexual Infanto-Juvenil, têm como objetivos

"Contribuir para a promoção, defesa e garantia de direitos de crianças e adolescentes

vítimas de violência sexual, buscando: i. identificar o fenômeno e riscos decorrentes; ii.

prevenir o agravamento da situação; iii. promover a interrupção do ciclo de violência; iii.

contribuir para a devida responsabilização dos autores da agressão ou exploração; e iv.

favorecer a superação da situação de violação de direitos, a reparação da violência vivida, o

fortalecimento dos vínculos familiares e comunitários, a potencialização da autonomia e o

resgate da dignidade".

11

Com a implantação do Sistema Único de Assistência Social (Suas), esse Programa

deve ser operacionalizado pelos Centros de Referência Especializados de Assistência Social

(Creas), de abrangência local ou regional, obedecendo às Normas Operacionais Básicas da

Política Pública de Assistência Social, devendo manter estreita articulação com os demais

serviços da Proteção Social Básica e Especial, com as demais Políticas Públicas e

instituições que compõem o Sistema de Garantia de Direitos.

3. Como Crianças e Adolescentes Vítimas de Violência Sexual São Ouvidos no

Judiciário

Toda a fase processual que envolve crimes deve ser regida por preceitos postos pela

Constituição Federal, que dizem respeito ao "devido processo legal, ampla defesa e o

contraditório".

11

Disponível em: . Acesso em: 02 jan.

2008.



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9

O Código de Processo Penal (CPP), datado de 1940, disciplina a aplicação da

legislação penal (processo legal) em relação à prática de crimes, e, neste caso, aqueles que

envolvem a violência sexual contra crianças e adolescentes, da seguinte maneira:

a. denúncia oferecida pelo Promotor de Justiça ao Juiz de Direito, com base em inquérito

policial, ou outras informações, por exemplo, a denúncia feita diretamente pela própria

vítima;

b. interrogação do acusado, acompanhado de defensor (os quais podem não comparecer);

c. apresentação de defesa escrita;

d. audiência para oitiva da vítima e das testemunhas, quando o juiz faz sua própria inquirição

às testemunhas e à vítima (no caso em estudo, a criança e/ou o adolescente) sobre o crime

e, em seguida, faz a elas as perguntas levantadas pelo Promotor de Justiça e defensor, com

objetivos de "conhecer a verdade dos fatos ocorridos".

Trata-se do chamado sistema "presidencial’, isto é, cabe exclusivamente ao juiz

(presidente da audiência) fazer todas as perguntas – inclusive as proferidas por acusação e

defesa –, tendo ele o "poder-dever" de censurá-las se considerá-las inadequadas ou

impertinentes.

Nesse processo, as declarações das vítimas são essenciais, servindo como uma das

provas para a formação da convicção do juiz para que estabeleça o julgamento

12

– isto é,

para que obtenha a "verdade dos fatos" para aplicação da pena. Por decisão do magistrado,

o acusado pode não estar presente a esta audiência, via de regra como uma forma de

proteção à vítima.

As normas para ouvir os adultos são as mesmas utilizadas para ouvir crianças e

adolescentes, o que tem sido questionado por profissionais de diferentes áreas, tendo em

vista sua condição peculiar de desenvolvimento (desenvolvimento cognitivo, intelectual,

psicossocial e psicossexual

13

).

Quando é possível estabelecer acordo entre defesa e acusação, a audiência com a

vítima (criança e/ou adolescente) pode deixar de ser realizada, sendo substituída por

avaliação técnica, geralmente realizada por assistentes sociais, psicólogos e/ou psiquiatras,

12

Tais declarações estão dispostas nos arts. 201 (perguntas à vítima) e 202 (perguntas às testemunhas) do

Código de Processo Penal.

13

Ver FURNISS (1993) apud DOBKE (2001). A obra de Tilman Furniss, especialmente o livro Abuso sexual da
criança: uma abordagem multidisciplinar, manejo, terapia e intervenção legal integrados (Porto Alegre: Artes

Médicas, 1993), tem sido utilizada com freqüência em estudos sobre o abuso sexual.



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10

a qual vai instruir a ação processual – que pode dar-se tanto na Justiça da Infância e

Juventude – para as medidas de proteção à criança e ao adolescente –, como na Justiça

Criminal, onde se desenvolverá o processo penal em relação ao suposto abusador

14

. Neste

tipo de avaliação, os profissionais realizam estudo social, psicológico e/ou psiquiátrico,

individualmente ou interdisciplinarmente (dependendo da composição e/ou articulação da

equipe técnica interna ao Judiciário, ou pertencente à rede de atendimento, neste caso,

geralmente vinculada à área da saúde). Em seguida, apresentam o laudo que registra o

trabalho e as conclusões a respeito da situação, destacando-se que tal trabalho pode incluir

respostas a quesitos

15

, se levantados pelas partes envolvidas. A critério de cada magistrado,

pode ser definida a participação do(s) profissional(is) na audiência para esclarecimentos

técnicos, com base no estudo realizado. Ainda que sejam conhecidas as dificuldades para se

operacionalizar a articulação da rede de atendimento, esse trabalho deve incluir em seu

norte a articulação com a rede familiar e social para o necessário atendimento e

acompanhamento do conjunto de pessoas envolvidas no abuso.

4. Propostas e Experiências de Depoimento Sem Dano (DSD)
4.1 A proposta e a experiência do DSD no Rio Grande do Sul

16

Veleda Dobke, promotora de justiça no Rio Grande do Sul, defende a

interdisciplinaridade na abordagem da violência sexual contra crianças e adolescentes no

Judiciário

17

, afirmando que o Direito necessita ouvir as demais disciplinas: "Encravado na

onipotência de um discurso que ainda não percebe que o sentido passa e perpassa pelo que

é sentido, o direito corre o risco de opor-se à multidisciplinaridade, reduzindo o amplo

espectro das ciências à condição de disciplinas auxiliares, as quais procura tiranizar na

busca da hegemonia" (2001, p. 17).

Reportando-se a Furniss (1993), Dobke (2001) discorre sobre os danos primários e

secundários causados às vítimas pelo abuso sexual, sendo os primeiros aqueles que

envolvem diretamente esse tipo de violência, compostos pela sedução, interação sexual

abusiva e pelo segredo que normalmente a envolve; os segundos são aqueles subseqüentes

14

Visando generalizar, utiliza-se neste texto o masculino para referência à pessoa que pratica a violência sexual,

sem desconsiderar que também pode ser praticada por pessoas do sexo feminino, ainda que em minoria.

15

Quesitos são questões relacionadas ao esclarecimento da situação, que o advogado de defesa, promotor e/ou

juiz podem levantar para que o profissional responda no estudo técnico que realiza, e apenas quando

pertinentes à área de conhecimento/intervenção questionada.

16

Com base nas publicações: DOBKE, V. Abuso sexual: a inquirição das crianças – uma abordagem

interdisciplinar. Porto Alegre: Ricardo Lenz, 2001; CÉZAR, J. A. D. Depoimento sem dano: uma alternativa para
inquirir crianças e adolescentes nos processos judiciais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007.

17

Trata-se de publicação que registra trabalho monográfico de curso de especialização que realizou.



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11

ao abuso (p. 23), causados por vários fatores, dentre eles os relacionados ao trauma e à

estigmatização decorrentes da denúncia e das diversas vezes em que a criança é exposta

ao ter que falar e/ou dar depoimento sobre o ocorrido – na escola, no Conselho Tutelar, na

delegacia, no Judiciário.

Ainda com base em Furniss, aborda a dinâmica do abuso sexual infantil, em especial

o intrafamiliar, destacando os fatores que levam ao segredo que o envolve e à adição por

parte do abusador. Em relação ao segredo, aponta a inexistência de evidência médica em

muitos casos, ameaças contra a criança abusada e suborno (por tratamento especial a ela,

por exemplo); falta de credibilidade da criança (considerada, pelo adulto, como alguém que

mente, fantasia

18

), temor das conseqüências da revelação (p. 34); com relação à adição (do

abusador), considerada complementar ao abuso, funciona como alívio de tensões, criando

uma dependência psicológica (p. 36).

Defendendo que nessas situações qualquer intervenção profissional "deve ter por

objetivo primeiro evitar o dano secundário que uma atuação desavisada pode causar",
pondera que, "na inquirição da criança, a atuação profissional não pode e não deve ser

diferente, ou seja, os juízes, promotores e advogados devem estar preparados,

emocionalmente, para perguntar e ouvir as respostas e possuir conhecimentos adequados,

que vão além do técnico-jurídico, para lidar com esta dura e cruel realidade" – para não

causar danos secundários e para "obter um relato que viabilize uma avaliação capaz de

conduzir a uma segura convicção sobre a prática abusiva" (p. 25).

Com apoio em legislação que permite a nomeação de intérprete para ouvir surdos-

mudos ou estrangeiros que não entendam a língua nacional (art. 223 do Código de Processo

Penal), Dobke pondera que, quando os operadores do Direito

19

não se sentirem capacitados

para ouvir a criança vítima de abuso sexual, podem nomear "um ‘intérprete’, com formação

em psicologia evolutiva e capacitação na problemática do abuso sexual, para, através dele,

ouvir a criança numa tentativa de melhor atingir os objetivos da ouvida – não infligir dano
secundário e obter relato que possa ser validado como prova para a condenação, se for o

caso". Para tal, sugere o uso da Câmara de Gesell

20

, como utilizada na Argentina, que

considera também possibilitadora da garantia dos direitos constitucionais do acusado, na

18

Ainda que estudos comprovem que a criança não pode fantasiar sobre acontecimentos que não fazem parte de

suas experiências, cf. Sanz e Molina, apud Dobke (2001), p. 41.

19

Indicado por Dobke como sendo juízes, promotores, advogados, defensores – também denominados de

operadores jurídicos (Cezar, 2007).

20

Recurso usual em laboratórios e/ou atividades de supervisão/formação/seleção em várias áreas, dentre elas a

psicanálise e a terapia familiar. Consiste em uma sala de atendimento com vidro reflexivo unidirecional, que

permite a observação/análise por parte de quem está externamente ao ambiente.



Page 12


12

medida em que as partes poderão fazer perguntas à vítima por intermédio do "expert" (p. 91-

93).

Refere também que a inquirição pode ser substituída por avaliação técnica, desde

que defesa e acusação concordem. Outra possibilidade que levanta é a criação de varas

especializadas para trâmite desses crimes, as quais devem contar com operadores jurídicos

especializados.

Cezar (2007) relata que, ao assumir a magistratura em vara criminal, deparava com

dificuldades para "inquirições em Juízo" de crianças e adolescentes vítimas de abuso sexual,

sendo que "as informações prestadas na fase policial não se confirmavam em Juízo", o que

criava "situações de constrangimento e desconforto para todos", principalmente às crianças

e aos adolescentes, e as "ações terminavam, na sua maior parte, sendo julgadas

improcedentes, com base na insuficiência de provas" (p. 60). Diante desse quadro, buscou

estudar a questão recorrendo a conhecimentos na psicologia e na psicanálise, até visualizar

a possibilidade da "inquirição da criança" "através de profissional habilitado, com o uso da

‘Câmara de Gesell’"

21

, concluindo que, com esse recurso, os "operadores jurídicos" poderiam

fiscalizar o depoimento e dele participar, resguardando os princípios do contraditório e da

ampla defesa.

Em razão de dificuldades físicas dos prédios do Poder Judiciário para instalar tal

Câmara, optou-se por um projeto-piloto (no Fórum Central de Porto Alegre-RS) com a

instalação de uma sala para depoimentos de crianças e adolescentes vítimas de abuso

sexual, interligada por vídeo e áudio à sala formal de audiências, onde permanecem os

operadores jurídicos, réu, e servidores da justiça, com possibilidades de "interagirem durante

o depoimento", inclusive com o controle da câmera pelo computador da sala de audiências e

zoom que possibilita a ampliação da imagem (p. 61-64).

Dessa maneira, segundo o autor, os depoimentos podem ser realizados "de forma

mais tranqüila e profissional, em ambiente mais receptivo, com a intervenção de técnicos

previamente preparados para tal tarefa, evitando, dessa forma, perguntas inapropriadas,

impertinentes, agressivas e desconectadas não só do objeto do processo, mas

principalmente das condições pessoais do depoente" (p. 62).

21

Concluiu pela viabilidade do uso desse recurso após assistir ao filme Atos inqualificáveis (Unspeakable acts.

Direção de Linda Otto, EUA, 1989), baseado em fatos reais, e que retrata a participação de dois terapeutas

especializados no tratamento de crianças traumatizadas na investigação de um caso de suspeita de abuso

sexual infantil em massa, na Flórida, que envolveu o diretor de uma escola e sua assistente.



Page 13


13

O depoimento, gravado na memória de um computador, é degravado, juntado aos

autos, com uma cópia em disco anexada na contracapa do processo. Assim, todos os

envolvidos, se necessário, podem rever o depoimento para sanar eventuais dúvidas, e em

caso de julgamento em segundo grau, os julgadores terão acesso a esse material

22

(p. 62).

Esta forma de inquirição atende, de acordo com o autor, os três principais objetivos

do projeto, que são: "- Redução do dano

23

durante a produção de provas em processos

judiciais, nos quais a criança/adolescente é vítima ou testemunha; - A garantia dos direitos

da criança/adolescente, proteção e prevenção de seus direitos, quando, ao ser ouvida em

Juízo, sua palavra é valorizada, bem como sua inquirição respeita sua condição de pessoa

em desenvolvimento; - melhoria na produção da prova" (p. 62).

Em relação ao papel do "técnico entrevistador

24

" – que deve ter conhecimento prévio

dos autos processuais, e do estágio de desenvolvimento cognitivo, emocional, social e físico

da criança, dentre outros (p. 73-74), Cezar pondera que deve "facilitar o depoimento da

criança", de maneira a que a prova produzida tenha qualidade (p. 66-67). Para tal, enumera

habilidades importantes, geralmente exercidas durante uma entrevista técnica, como

acolhimento e capacidade de escuta, compreensão, apoio, dentre outras, e também

conhecimento teórico relativo ao abuso, e "preferencialmente com experiência em perícia" (p.

67). Detalha da seguinte maneira as etapas da "dinâmica do depoimento": a) acolhimento

(realizado pelo técnico), meia hora antes da audiência, quando a criança e/ou adolescente e

pessoas de sua confiança são esclarecidas sobre os papéis dos operadores jurídicos, do

técnico e do depoente; nessa oportunidade mostra-lhe a sala de audiência, e explica a ela

"os motivos de ela estar mais protegida" (p. 68). E colhe "sua manifestação a respeito da

presença do réu na sala de audiências durante a sua inquirição" (p. 68-69), ressaltando que

em nenhum momento a criança se encontrará com o réu; b) depoimento ou inquirição: o

técnico explica a dinâmica do depoimento, que se trata de audiência de instrução, a qual, de

acordo com as normas processuais penal ou civil, é presidida pelo juiz, a quem cabe,

"exclusivamente, dar início e ordenar aos atos, conforme a lei, e decidir sobre as questões

que forem suscitadas durante o transcorrer – cabendo ao técnico atuar como facilitador do

depoimento da criança/adolescente" (p. 69). Reportando-se a Furniss, expõe que as

perguntas devem ser preferencialmente as abertas, pois permitem que a vítima apresente a

situação conforme sua visão, de maneira a evitar indução de respostas (p. 74-75); c)

22

Em 32 meses de funcionamento (abr. 2003 a dez. 2005), foram realizadas "398 inquirições" dessa maneira, na

2ª Vara da Infância e Juventude de Porto Alegre (Cezar, 2007, p. 64).

23

Itálico, pelo autor.

24

Denominação dada por Daltoé ao assistente social ou psicólogo responsável pela coleta do depoimento.



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14

acolhimento final/encaminhamentos: após o depoimento, o técnico, com o sistema de

gravação desligado, permanece com a criança e/ou adolescente e sua família, realizando

devolutiva, colhendo assinaturas no termo de audiência e, se avaliar como necessário,

realizando orientações/encaminhamentos junto à rede de proteção familiar e social (p. 76-

77).

Cezar ressalta a importância do domínio de suporte teórico sobre maus-tratos e

abuso sexual por parte de todos os agentes envolvidos nesse tipo de projeto, e defende,

para essa intervenção (com base em PAULA, 2005), o que denomina de

transdisciplinaridade, de maneira a "afastar as barreiras que se levantam quando o saber

específico de cada área profissional é utilizado como forma de poder (e de resistência às

mudanças), representando a verdade única

25

, atitude esta que impede a interação entre

áreas que na verdade se complementam" (p. 95).

Assinalando que a criança é exposta diversas vezes e inadequadamente, diante de

vários órgãos e agentes, causando novos danos, ou dano secundário, tão ou mais graves
que o próprio abuso, informa que a prática nas Varas da Infância e da Juventude demonstra

que não raro, após a primeira revelação – muitas vezes ocorrida na escola –, a criança é

ouvida no serviço de orientação educacional da escola; depois segue para o Conselho

Tutelar, Hospitais, Delegacia de Polícia, Instituto Médico legal, Ministério Público e,

apresentado o caso à justiça, novamente será ouvida, em audiência (p. 98). Com base

nessas situações que considera desrespeitosas à dignidade da criança e à sua condição de

pessoa em situação peculiar de desenvolvimento, defende a "produção antecipada de

prova". No caso de Porto Alegre, a proposta – ainda a ser viabilizada – é que seja ouvida

uma única vez por técnico de hospital local especializado em maus-tratos e, posteriormente

à citação do réu em Juízo, a criança seria inquirida, usando-se o projeto "Depoimento semDano", pelo mesmo profissional que a atendeu no hospital (p. 100).
4.2. O projeto de DSD em São Paulo

Em São Paulo estão sendo encaminhadas providências para a implantação da

metodologia Depoimento sem Dano a partir de projeto denominado "Reordenamento
institucional por uma melhor garantia de direitos de crianças e adolescentes: especialização

de competência e abordagem sistêmica no enfrentamento de crimes contra crianças e

adolescentes", por iniciativa da Coordenadoria da Infância e Juventude do Tribunal de

25

Itálico, pelo autor.



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15

Justiça do Estado de São Paulo (TJSP), provocada pelo juiz de direito Eduardo Rezende de

Melo (atual vice-presidente da ABMP

26

), de São Caetano do Sul (Grande São Paulo), com

apoio das assistentes sociais que compõem a equipe técnica local (segundo informação do

magistrado), pretendendo-se, em seguida, ampliar tal procedimento para outras três

comarcas: São Paulo, Campinas e São Bernardo do Campo.

O projeto, inspirado na metodologia adotada no Rio Grande do Sul, é justificado por

possíveis danos/revitimização causados à criança e ao adolescente pelos inúmeros

depoimentos que seguem a uma denúncia de maus-tratos/abuso sexual. Os recursos

financeiros poderão advir de parceria estabelecida com o Conselho Municipal de Direitos da

Criança e do Adolescente (financiamento pelo Fumcad

27

), de São Caetano do Sul, a

Secretaria de Reforma do Judiciário do Ministério da Justiça, e a ONG WCF

28

(que, em

princípio, será responsável pelo acesso a experiências internacionais semelhantes).

Em reunião realizada no CRESS-SP, em 17.12.2007

29

, da qual participaram

30

o

desembargador Antonio Carlos Malheiros (coordenador da Coordenadoria da Infância e

Juventude do TJSP), os juízes Reinaldo Torres Cintra (assessor da Corregedoria Geral de

Justiça do Estado de São Paulo para assuntos da infância e juventude) e Eduardo Rezende

de Melo (juiz titular da Infância e Juventude de São Caetano do Sul), membros da diretoria e

assessoria jurídica do CRESS-SP e presidente do CFESS

31

, para discussão da metodologia

Depoimento sem Dano e sua situação em São Paulo, o juiz Eduardo Rezende de Melo
expôs que a implantação de tal projeto pelo TJSP poderá ser acompanhado da assinatura de

um protocolo entre as várias organizações e áreas profissionais participantes, por meio do

qual poderão ser garantidos direitos e prerrogativas profissionais, dentre outras, na

condução da metodologia (ainda que a redação do projeto não tenha previsto a existência do

protocolo).

32

26

Associação Brasileira de Magistrados e Promotores da Infância e Juventude (a qual tem significativa presença

no Conanda).

27

Fundo Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente.

28

World Childhood Foundation, fundada pela rainha da Suécia. Disponível em: .

29

Em 14.11.2007 ocorreu uma primeira reunião no CRESS (Conselho Regional de Serviço Social)-SP (sem a
presença dos magistrados), provocada pelo CRESS-RJ, contando com a participação de sua presidente,

Andréia Pequeno, tendo em vista a preocupação com a iminente implantação da metodologia DSD no Tribunal

de Justiça do Rio de Janeiro.

30

A convite do CRESS-SP e CFESS, com base em decisão da reunião de 14.11.2007.

31

Participaram também a autora deste Parecer, a assistente social Profª Dra. Dalva Gueiros, e a assistente social

Ana Maria da Silveira, 1ª secretária da Associação dos Assistentes Sociais e Psicólogos do Tribunal de Justiça

do Estado de São Paulo (AASPTJ-SP).

32

O Des. Malheiros convidou o CFESS e o CRESS-SP para acompanharem a experiência-piloto de São Caetano

do Sul, juntamente como o Dr. Eduardo de Melo, para que possam participar da elaboração de protocolos que

contemplem as preocupações apontadas na reunião. Na ocasião, a presidente do CFESS afirmou o interesse

desta entidade em aprofundar o debate sobre a metodologia, pelo fato de estar em fase de estudos para a



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16

4.3. Algumas experiências internacionais

33

4.3.1 Argentina

Em 2004 foi promulgada modificação no Código Processual Penal argentino dispondo

que, em caso de maus-tratos, menores até 16 anos de idade "serão entrevistados apenas

por um psicólogo especializado em crianças e adolescentes, designado pelo tribunal que

ordena a medida, não podendo, em caso nenhum, ser interrogados de forma direta pelo dito

tribunal ou pelas partes", e que tal entrevista poderá ser acompanhada de fora do recinto,

por vidro espelhado, microfone ou vídeo (CEZAR, 2007, p. 119).

4.3.2 França

Conforme a psicóloga e psicanalista do Setor Judiciário do Service Social de

l’Enfance de Paris, Marlene Lucksch

34

, a denúncia ou notificação de violência contra crianças

e/ou adolescentes tem na França um circuito muito preciso:

A criança é ouvida pela Brigade des mineurs (polícia de menores), formada por

policiais "cuja função é apurar todos os problemas que digam respeito à proteção à infância

e adolescência (violências, abusos sexuais…). Essa polícia especial (que se veste a

paisana) é formada especialmente para esse cargo e existe em todos os municípios. Desde

1998 existe uma lei que obriga a filmagem dos depoimentos das crianças, sendo que elas e

seus pais devem autorizá-la". Em seguida, uma das audições gravadas em fitas de vídeo vai

para o Ministério Público, para envio ao juiz, e a outra fica com a polícia.

A audição pode ser realizada em hospitais, com a presença de médicos e psicólogos,

mas sua condução deve ser feita pelos policiais, sem intervenção dos outros profissionais.
Iucksch relata que "O psicólogo nunca atua enquanto agente na fase de apuração. O

papel dele será de acompanhamento da criança, enquanto psicoterapeuta, perito designado,

atuando na medida educativa".

Assinala que "uma criança que denuncia alguém a um profissional, deve ser ouvida

em primeiro lugar somente pela polícia. Do profissional que notifica (um professor, um

emissão de uma posição do CFESS com relação ao Depoimento sem Dano, deixando claro que o CFESS tem
que olhar para o Brasil como um todo, nas diferentes formas como estão sendo pensadas a operacionalização

da metodologia.

33

Existem experiências semelhantes em vários países; as que estão aqui apresentadas foram as possíveis de

localizar no tempo disponível para a elaboração deste trabalho.

34

Em resposta a questões levantadas no I Seminário Internacional sobre Atenção, Proteção e Prevenção a

Crianças e Adolescentes Vulneráveis a Violência Sexual, realizado no dia 27 de junho de 2007 em São Paulo.

Ver , em Notícias, 06.08.2007. Acesso em: 02 jan. 2008.



Page 17


17

serviço hospitalar, um psicoterapeuta) só se espera que saiba recolher as informações,

elaborar o relatório escrito e enviar para o MP. Notificar não é provar se é verdade ou não o

fato. (...) procurar as provas, organizar os elementos e saber se há consistência suficiente

para conduzir um processo criminal é papel da instrução".

Analisa que "essa questão das diferentes verdades é sempre muito difícil porque

envolve a responsabilidade de cada profissional, mas de maneira diferente. Cada um tem

uma escuta a partir da sua formação, da ética própria a sua função. Se todo mundo que

ouve a criança considera que o que ela diz realmente aconteceu, quem vai ouvir o sintoma

da criança? Se todo mundo considera que tudo é sintoma da criança e não notifica os

indícios de abusos sexuais, quem o fará?", questiona.

4.3.3 África do Sul

Rika Swanzen, assistente social com experiência e estudos em abuso infantil, expõe

no artigo "Serviços de intermediação para crianças-testemunhas que depõem em tribunais

criminais na África do Sul

35

" que, desde 1997, a legislação local prevê a designação de um

intermediário para ouvir crianças que depõem em processo criminal relativo a abuso sexual,

com objetivos de reduzir o trauma e o abuso secundário experimentado pela criança-

testemunha e preservar direitos do acusado quanto à inquirição da vítima.

Embora não seja especificado de que área profissional deve ser o intermediador, o

artigo informa que, na maioria dos casos, trata-se de assistente social. Seu papel é o de

tradutor das pergunta feitas pelo juiz e demais partes participantes da audiência, devendo

"atenuar agressões e intimidações", entre outras tarefas. O depoimento acontece por meio

de circuito interno de televisão.

Entre as dificuldades experimentadas pelos intermediadores, aponta "o

questionamento da capacidade da criança entender conceitos de verdade conforme

definidos por adultos", a "dúvida se um processo bem sucedido compensa o trauma a que

ele submete a criança", e o "conflito de papéis entre assistentes sociais e intermediadores".

Com base em Muller, assinala que, na prática, o "poder do intermediador é muito

limitado, pois ele é percebido como nada mais do que um intérprete", sendo que o juiz pode

insistir que repita a pergunta com as mesmas palavras, e o intermediador não tem

autoridade para argumentar sobre a inconveniência de algumas perguntas – quanto à

35

Revista Internacional de Direitos Humanos, nº 6. Disponível em: .

Acesso em: 04 jan. 2008.



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18

seqüência e à maneira de proferi-las. Observa ainda que o contexto de realização do

testemunho pode causar mais danos à criança, e que os intermediadores se defrontam com

um foco acentuado nos direitos do acusado e com a limitação de serviços de apoio à criança

e à família após o depoimento.

O projeto está sendo avaliado e existem propostas de se estabelecer "protocolos e

códigos de boas práticas" objetivando aprimorar sua aplicação, e nos quais devem ser

incluídos diversos aspectos com vistas à proteção da criança, entre eles a especialização do

atendimento, a capacitação dos profissionais, e serviços imediatos (integrados) de apoio aos

envolvidos.

4.4 Projeto de Lei nº 7.524/06

Tramita atualmente no Senado Federal Projeto de Lei de autoria da deputada Maria

do Rosário (PT-RS), o qual, com base na experiência do Tribunal de Justiça do Rio Grande

do Sul, pretende incorporar ao ECA e ao Código de Processo Penal alterações para

inquirição de crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência sexual por meio

do DSD, podendo tal procedimento ser estendido a outros crimes, inclusive com a

possibilidade de produção antecipada de prova.

Visando salvaguardar "a integridade física, psíquica e emocional do depoente,

considerada a sua condição peculiar de pessoa em desenvolvimento", em razão da "idade

do depoente, para que a perda da memória dos fatos não advenha em detrimento da

apuração da verdade real", e para "evitar a revitimização do depoente, com sucessivas

inquirições sobre o mesmo fato, nos âmbitos criminal, cível e administrativo", as alterações

principais seriam dispostas da seguinte maneira:

"I – A inquirição será feita em recinto diverso da sala de audiências, especialmente

projetado para esse fim, o qual conterá os equipamentos próprios e adequados à

idade e à etapa evolutiva do depoente;

II – Os profissionais presentes à sala de audiências participarão da inquirição através

de equipamento de áudio e vídeo, ou de qualquer outro meio técnico disponível;

III – A inquirição será intermediada por profissional devidamente designado pela

autoridade judiciária, o qual transmitirá ao depoente as perguntas do Juiz e das

partes;

IV – O depoimento será registrado por meio eletrônico ou magnético, cuja

degravação e mídia passarão a fazer parte integrante do processo.



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19

Parágrafo único. A autoridade judiciária, de ofício ou a requerimento das partes,

poderá adotar idêntico procedimento em relação a crimes diversos dos mencionados

no caput, quando, em razão da natureza do delito, forma de cometimento, gravidade

e conseqüências, verificar que a presença da criança ou adolescente na sala de

audiências possa prejudicar o depoimento ou constituir fator de constrangimento em

face de sua condição peculiar de pessoa em desenvolvimento."

Conforme assinalado, o projeto prevê a produção antecipada de prova, isto é,

pretende-se que a criança e/ou adolescente seja ouvida por meio do DSD uma só vez, logo

após a denúncia, sendo a cópia do depoimento e a mídia gravada encaminhadas às

autoridades competentes (responsáveis por ações cíveis ou criminais). Também está

prevista a possibilidade de prova pericial.

O PL não especifica se os profissionais que atuarão como "intérpretes" no DSD serão

assistentes sociais e/ou psicólogos. Todavia, como os profissionais são designados pelo

magistrado responsável pela Vara e, na maioria dos tribunais, a equipe técnica, subordinada

administrativamente a magistrados, é composta por esses profissionais, muito possivelmente

eles é que atuarão com inquiridores ou intérpretes, como já ocorre no Rio Grande do Sul.

5. Algumas Repercussões do DSD na Sociedade

O DSD vem sendo recebido com entusiasmo por organizações da sociedade civil,

governamentais e não-governamentais, que atuam e/ou militam na área da proteção à

criança e ao adolescente. Por outro lado, começam a aparecer algumas análises críticas,

principalmente da área da psicologia, questionando seus objetivos e forma de operar.

Apresentamos a seguir algumas manifestações, ações e análises a respeito, com vistas a

situar repercussões que tal "metodologia" vem trazendo, e contribuir com o debate entre os

assistentes sociais.

5.1 Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (SEDH)

A Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, após tomar

conhecimento do trabalho desenvolvido no Rio Grande do Sul, decidiu apoiar projetos dessa

natureza em todo o Brasil.

A partir de outubro de 2006, "a Secretaria Especial de Direitos Humanos (SEDH), em

parceria com o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, passou a apoiar a disseminação

da experiência em outros Estados, junto às varas da infância e da juventude. Estão sendo

firmados convênios com os Tribunais de Justiça interessados em implantar esse modelo no



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20

ano que vem, para repassar recursos que serão destinados à aquisição dos equipamentos

audiovisuais necessários e para capacitar técnicos, juízes e promotores nesse procedimento.

36

" (CARTA MAIOR, de 15.12.2006

37

).

5.2 Prêmio Innovare – menção honrosa

O juiz José Antônio Daltoé Cezar, da 2ª Vara da Infância e Juventude de Porto Alegre,

responsável pela implantação do projeto nesse Estado e pela disseminação do DSD no

Brasil, recebeu em dezembro de 2006 menção honrosa no III Prêmio Innovare: "A Justiça do

Século XXI", pela prática do projeto Depoimento sem Dano. O Prêmio Innovare é realizado
conjuntamente pela Secretaria de Reforma do Judiciário do Ministério da Justiça, AMB,

Fundação Getúlio Vargas/Rio, Associação Nacional dos Defensores Públicos (Anadep),

Associação Nacional dos Membros do Ministério Público (Conamp) e Associação Nacional

dos Juízes Federais (Ajufe). Além dessas entidades, a premiação conta com o apoio da

Companhia Vale do Rio Doce.

5.3 Conanda

O Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda) deliberou

em sua 155

a

Assembléia Ordinária (setembro de 2007) pela emissão de moção de apoio ao

PL nº 35/2007 (número recebido no Senado pelo PL nº 7.524/06), "esperando a observância

de absoluta prioridade no seu trâmite". Segundo informações recebidas de membro do

Conanda, a moção foi elaborada, mesmo que sem aprofundamento do debate, mas ainda
não foi submetida a aprovação.

5.4 Conselho Federal de Psicologia (CFP)

O CFP vem debatendo a temática, porém, de acordo com informações extra-

oficiais

38

, não chegou a um consenso a respeito. A Comissão Nacional de Direitos Humanos

(CNDH) do CFP tem se manifestado contrária ao PL e ao Depoimento sem Danos, todavia o
Conselho considera necessário estar aberto ao debate a respeito, em conjunto com órgãos

de defesa da criança e do adolescente, de maneira a pensar "a construção de metodologia

comprometida eticamente com as transformações sociais", considerando ainda que já

existem psicólogos que trabalham na proposta e a apóiam.

36

Disponível em: . Acesso em: 04 nov. 2007.

37

Em dezembro de 2006 o Boletim Carta Maior publicou uma série de reportagens sobre o tema do DSD, a partir

de projeto vencedor da categoria mídia alternativa do 3º Concurso Tim Lopes para Projetos de Investigação

Jornalística, realizado pela Andi e pelo Instituto WCF-Brasil, com o apoio do Unicef, da OIT, da Fenaj e da

Abraji.

38

Informações fornecidas pela representante do CFP no CONANDA, Maria Lúcia Moura.



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21

5.5 CRESS-RJ e CRP-RJ

Preocupados com a iminente instalação do DSD pelo Tribunal de Justiça do Rio de

Janeiro, em abril de 2007 o Conselho Regional de Serviço Social do Rio de Janeiro (CRESS-

7ª Região) e o Conselho Regional de Psicologia do Rio de Janeiro (CRP-RJ) realizaram o

evento "Depoimento Sem Danos: O que você pensa sobre isso?", visando debater a

participação dos profissionais dessas áreas em projeto dessa natureza

39

. Participante do

encontro, Eliana Olinda Alves, psicóloga do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, ponderou

que "a inquirição à vítima compete à área policial ou jurídica, não é papel do psicólogo atuar

em tal procedimento nos processos. Segundo ela, o Direito busca uma verdade inconteste,

em que não se pode errar. Para Eliana, parece haver uma confusão quanto à natureza de

trabalhos interdisciplinares, pois, em vez de atuar como psicólogos, os profissionais estariam

trabalhando em funções que se caracterizariam como extensões do juiz. A psicóloga aponta

para o perigo de anulação entre as diferenças da entrevista característica do Depoimento

Sem Danos e a entrevista característica da consulta psicológica".

A assistente social Gloria Vargas, mestre em Serviço Social e assistente social do

Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, considerou que existe uma certa confusão entre os

procedimentos do Direito e de outras áreas, como o Serviço Social e a Psicologia: "(...) no

Sistema Judiciário de hoje, haveria um processo de subordinação entre os saberes, sendo o

Direito a área de conhecimento ainda situada no topo de uma hierarquia: ‘Isto se dá através

de procedimentos sutis, sofisticadíssimos, que têm relação com a própria juridicialização da

vida social. O Depoimento Sem Danos me parece estar ligado a um conjunto de outros

programas: a Justiça Terapêutica, a Justiça Negociada, entre outros. Um modelo que tem

influência domodelo norte-americano, dos anos oitenta’".

5.6 I Seminário sobre Crianças e Adolescentes em Situação de Risco e Vítimas de

Abuso Sexual – Campinas e São Paulo

40

39

Projeto Depoimento Sem Danos gera debates no Rio de Janeiro – 07/05. Disponível em:

. Acesso em: 04 nov. 2007.

40

Organizado em junho de 2007 pela Associação dos Assistentes Sociais e Psicólogos do Tribunal de Justiça do

Estado de São Paulo (AASPTJ-SP) e pela Vara da Infância e Juventude de Campinas, em parceria com a

Coordenadoria da Infância e Juventude do TJ/SP, Corregedoria Geral da Justiça, Escola Paulista da

Magistratura, CAO da Infância e da Juventude do Ministério Público do Estado de São Paulo, ABMP, WCF,

CNRVV do Instituto Sedes Sapientiae, a ONG francesa Antigone, Recherche, Confeil et Formation, com

patrocínio da Medley e apoios do Senai e da Faap. Disponível em: . Em Boletins
Eletrônicos, 04 jul. 2007.



Page 22


22

Este seminário, que reuniu organizações e profissionais que atuam no sistema de

proteção à criança e ao adolescente, incluiu entre seus debates a questão do DSD (trazida

por meio de apresentação da experiência do Rio Grande do Sul), apontando proposições

para sua efetivação, conforme segue

41

:

"a. Entendimento de que as formas para se evitar a revitimização de crianças ou

adolescentes, vítimas de abuso sexual, são de extrema importância, como por

exemplo, a proposta do depoimento com redução de dano;

b. Necessidade de se abrir ampla discussão sobre o assunto, para que, na hipótese

de se optar pela sua implementação, possam ser garantidos todos os direitos da

criança e adolescente, o devido processo legal e a ampla defesa do acusado, e para

que se possa buscar a eficiência na colheita do depoimento;

c. A implementação exigirá prévia capacitação do interlocutor, do facilitador da

colheita dos depoimentos. Há a necessidade de se estabelecer critérios objetivos

para se definir o profissional que estará habilitado para esta função. Também deverá

ocorrer a capacitação continuada e a supervisão dos profissionais."

6. A Proteção Integral à Criança e ao Adolescente e o Direito de Serem Ouvidos

6.1 Algumas normativas

De acordo com a doutrina de proteção integral, paradigma do ECA, a criança e o

adolescente são considerados sujeitos de direitos. Conforme observado no texto do PNCFC,

"a palavra ‘sujeito’ traduz a concepção da criança e do adolescente como indivíduos

autônomos e íntegros, dotados de personalidade e vontade próprias que, na sua relação

com o adulto, não podem ser tratados como seres passivos, subalternos ou meros ‘objetos’,

devendo participar das decisões que lhes dizem respeito, sendo ouvidos e considerados em

conformidade com suas capacidades e grau de desenvolvimento" (PNCFC, 2006, p. 25).

A Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança

42

, ratificada pelo Brasil,

estabelece em seu artigo 12:

"1. Os Estados Partes assegurarão à criança que estiver capacitada a formular seus

próprios juízos o direito de expressar suas opiniões livremente sobre todos os

assuntos relacionados com a criança, levando-se devidamente em consideração

essas opiniões, em função da idade e da maturidade da criança.

41

Inserido no contexto do foco central do seminário, a questão do DSD abordada não havia sido até então objeto

de debates e esclarecimentos mais aprofundados, entre assistentes sociais e psicólogos associados à

AASPTJ-SP, uma das organizações promotoras, e responsável pelo relatório final.

42

Adotada pela Assembléia Geral das Nações Unidas em 20 de novembro de 1989.



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23

2. Com tal propósito, se proporcionará à criança, em particular, a oportunidade de ser

ouvida em todo processo judicial ou administrativo que afete a mesma, quer

diretamente quer por intermédio de um representante ou órgão apropriado, em

conformidade com as regras processuais da legislação nacional."

6.2 A escuta e a "inquirição" da criança

Em artigo sobre "A escuta da criança no sistema de justiça", Brito, Ayres e Amen

43

(2006) afirmam terem percebido diferentes encaminhamentos com relação à escuta da

criança e do adolescente em ações das Varas da Infância e da Juventude e Varas de

Família, os quais separam as "crianças em perigo" e as "crianças perigosas": "(...) a escuta

da criança adquire diferentes pesos, dependendo das causas em julgamento. Ao centrar o

foco em processos que requerem decisões relacionadas aos menores de idade, observamos

que a fala destes vem sendo sistematicamente solicitada em determinadas situações como

as que envolvem denúncias de abuso sexual e nas disputas de guarda decorrentes da

separação conjugal dos pais, independente da idade das crianças. No entanto, a fala dos

que cumprem medidas socioeducativas e dos que se encontram abrigados não aparece tão

valorizada".

Questionando "o grau de responsabilidade jurídica que vem sendo atribuído às

crianças das mais diversas idades, ponderam que "a valorização da palavra e da opinião da

criança tem validade para alguns menores de idade, envolvidos em determinados processos,

principalmente quando se acha necessário recolher informações sobre o comportamento de

seus pais". A partir de estudos de Giberti, Mathis e Thèry, advertem que "esse procedimento

pode contribuir para a desvalorização dos responsáveis, desqualificando-os perante a

criança, que se vê desprotegida. Lançada à própria sorte, é ela quem, mesmo não

desejando a separação conjugal dos pais, vai opinar a respeito de com quem irá residir,

explicar como seus pais se relacionam ou ainda quem lhe educa melhor; é ela quem vai

dizer se os pais batem ou não cuidam direito, assim como é o seu testemunho que será,

prioritariamente, levado em consideração nas denúncias de abuso sexual. No entanto, deve

se calar quando está sob cuidados do Estado, seja em instituições de abrigo, seja cumprindo

medidas socioeducativas ou prestes a ser adotada".

Avaliam que com essa prática mantém-se "a dicotomia da infância que aporta ao

judiciário, ou seja, a ‘infância em perigo’, que deve indicar quem são seus algozes, e a

‘infância perigosa’ que, por se constituir em uma ameaça social, não deve se expressar"

43

Da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ).



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24

(com base em DONZELOT). "No primeiro caso, temos pais calados e crianças que falam, ou

cujos desejos devem decidir questões jurídicas em nome de seus direitos. No segundo

grupo, vozes caladas, sem eco, cujos pais, na maior parte das vezes, também já foram

calados pelo aparelho de Estado, no qual o som de suas vozes não possui volume suficiente

para se fazer valer, ou quem sabe, argüir sobre os direitos de suas crianças, retirando-as

das amarras do Estado".

Esther Maria de Magalhães Arantes

44

, ao tratar da questão que envolve o psicólogo

nos programas denominados Depoimento sem Dano, aponta que em tais programas esse

profissional "não é chamado a desenvolver uma prática ‘psi’ propriamente falando, mas a ter

uma função de ‘duplo’, de ‘instrumento’, ou ‘boca’ humanizada do juiz" (Arantes, 2008, p. 14-

15).

Buscando entender o papel desempenhado pelo psicólogo nesse programa, e ainda

que se possa considerar como louváveis as intenções dos que defendem a modalidade de

depoimento sem dano, argumenta que, existe "certa dose de ingenuidade na expressão ‘sem

dano’ (...). Ou seja, uma audiência jurídica não é exatamente o mesmo que uma entrevista,

consulta ou atendimento psicológico, onde a escuta do psicólogo é orientada pelas

demandas e desejos da criança e não pelas necessidades do processo, sendo resguardado

o sigilo profissional. Ademais, eventuais perguntas feitas pelo psicólogo à criança não podem

ser qualificadas como inquirições, não pretendendo esclarecer a ‘verdade real’ ou a

‘verdade verdadeira dos fatos’ – mesmo porque, nas práticas psi, fantasias, erros, lapsos,

esquecimentos, sonhos, pausas, silêncios e contradições não são entendidos como sendo

opostos à verdade" (ibid, p. 16).

Ponderando sobre o "mal-estar" por parte dos psicólogos diante de alguns programas

que vêm sendo implantados pelos Tribunais de Justiça, refere que habitualmente se criticava

(e se critica), nos espaços de trabalho do psicólogo no Judiciário, "a existência de um poder

excessivo por parte do juiz, que muitas vezes não levava em consideração o parecer técnico

ou a existência de opiniões divergentes sobre o caso; uma abusiva criminalização do modo

de vida de pessoas pobres, possibilitada pelos procedimentos técnico-jurídicos adotados

e/ou pela ausência ou precariedade da Defensoria Pública; a nem sempre existência de

correspondência ou razoabilidade entre o crime suposto e a sanção recebida, como em

processos de destituição do poder familiar de mulheres-mães pobres, respaldados em

44

Coordenadora da Comissão Nacional de Direitos Humanos do Conselho Federal de Psicologia e professora da

UERJ e da PUC-Rio.



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25

laudos técnicos eivados de preconceitos, constituindo-se a equipe técnica em agente acrítico

de processos de exclusão social

45

; a criminalização da conduta exploratória dos

adolescentes e jovens em relação às drogas, através de leis proibicionistas que

desrespeitam a liberdade, a privacidade e a dignidade da pessoa humana – mas nunca

antes, diferentemente do que parece estar agora ocorrendo, pelo menos em termos de

algumas práticas, admitia-se uma intromissão direta na ‘seara alheia’"(p. 2).

Por sua vez, a procuradora de Justiça do Rio Grande do Sul, Maria Regina Fay de

Azambuja

46

, assinala a necessidade de se questionar e repensar o DSD com base no

compromisso com a proteção integral, o respeito e a dignidade da criança. Considera que tal

modo de obtenção de depoimento também é uma forma de exploração a que o Sistema de

Justiça submete a criança: "Imagina uma menina de cinco anos que foi abusada pelo

companheiro da mãe ou por seu próprio pai e sabe que, se entrar ali e disser isso, ele vai

para a cadeia. Como fica a cabecinha dela, sabendo que tem esse poder? (...) Todos os

estudos na área da saúde mental dizem que não é bom para ela essa exposição, ter que

falar dessas coisas nesse tipo de ambiente. É diferente de falar isso no ambiente

terapêutico" (CARTA MAIOR, 2006).

Uma das alternativas propostas por Azambuja para obter uma prova do crime

envolve a necessidade de avaliar o abusador, o que, segundo suas palavras, não costuma

acontecer atualmente. Também aponta que uma outra alternativa seria "submeter também a

criança à avaliação de profissionais da área da saúde mental, num ambiente fora do Fórum,

em uma série de encontros, para ver se ela tem danos psíquicos. A partir disso, juntaria as

duas avaliações a alguns dados dessa família, para se chegar a uma conclusão" (CARTA

MAIOR, 2006.

Em livro de sua autoria, Azambuja (2004) enfatiza a importância do trabalho

interdisciplinar e da capacitação permanente (incluindo a supervisão) de todos os

profissionais envolvidos com a identificação, o diagnóstico, a notificação, a proteção e as

providências legais relativas à criança vítima de violência sexual como possibilidade de, de

fato, enfrentar-se tal questão (p. 151). Nesse sentido, aponta que não são apenas os

inúmeros depoimentos que revitimizam, mas o despreparo de profissionais de diversas

áreas, entre eles os da área do Direito e os próprios conselheiros tutelares – os primeiros

45

A esse respeito, a pesquisa publicada no livro Questão social e perda do poder familiar" (FÁVERO, E. T. São

Paulo: Veras, 2007), apresenta vários exemplo e análises.

46

Integrante do Movimento pelo Fim da Violência e Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes do Rio

Grande do Sul. Autora de livro e artigos que envolvem a questão da violência sexual intrafamiliar.



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26

geralmente a receberem a denúncia e, via de regra, despreparados para lidarem com o

problema. Assinala a necessidade da articulação de ações governamentais e não-

governamentais nas esferas federal, estadual e municipal, com ênfase na municipalização,

para a devida execução das políticas de proteção à criança e ao adolescente, nas quais se

incluem o atendimento à família e o atendimento ao abusador (p. 155-161). Considera ainda

a importância do uso de recursos tecnológicos, como filmagem de entrevista, por exemplo –

desde que realizada por profissional qualificado –, como alternativa a ser mais explorada.

Nesse sentido, exemplifica que, em um trabalho interdisciplinar na área da saúde, a

entrevista com a criança poderá ser realizada por apenas um membro da equipe e filmada

(desde que devidamente autorizada pelos responsáveis), com posterior análise do material

pelos demais membros – sendo que os resultados poderiam vir a compor laudos técnicos, se

necessário (p. 109).

7. Projeto Ético-político do Serviço Social e Atuação no Depoimento sem Dano

Ser um profissional criativo, no sentido de "desenvolver sua capacidade de decifrar a

realidade e construir propostas de trabalho criativas e capazes de preservar direitos, a partir

de demandas emergentes no cotidiano" (IAMAMOTO, 1998, p. 20), evitando permanecer

somente como executor de tarefas e determinações, é o desafio permanente que se põe aos

profissionais do Serviço Social.

Essa afirmação talvez seja uma das sínteses possíveis das preocupações que

rondam o trabalho do assistente social diante da iminência de, com a aprovação do PL nº

7.524/06, e/ou com a decisão de magistrados aos quais esse profissional é subordinado

administrativamente, passar a executar (em âmbito nacional) a tarefa de intérprete, ou de

"dublador" da fala deste. Pelo fato de a autoridade suprema do processo judicial – a quem

cabe a decisão final sobre o destino da criança e/ou do suposto abusador que atentou contra

seus direitos – não conseguir comunicar-se com a criança, ou não desejar aprender uma

linguagem, nem investir em outras formas de trabalho que possibilitem o estabelecimento de

uma comunicação direta que leve em conta os direitos da criança à proteção integral, seus

subordinados (possivelmente assistentes sociais e psicólogos, que compõem a maior parte

das equipes técnicas existentes nos Tribunais de Justiça) poderão vir a executar (ou, já

executam) a tarefa de transmitir à criança, com menor dano (segundo a proposta), as

inquirições cujas respostas constituirão uma das provas para punir ou absolver o suposto

criminoso.



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27

Tal cena pode levar a diversas leituras, e as relacionadas à busca da proteção, da

ausência ou redução de danos já estão expostas neste texto. Todavia, outras se fazem

necessárias: a criança e/ou adolescente não possuem o direito de saber claramente que as

partes, incluindo defesa e acusação, e o magistrado, que tem o poder constitucional da

decisão, podem causar-lhes danos, isto é, podem causar-lhes outros tipos de violência, por

isso ficam isolados em uma sala, "espiando" sua postura, suas expressões, emoções e sua

fala, por "modernos" meios tecnológicos? Nesse sentido, o DSD não encerraria uma grande

contradição? Por que quem tem o dever "maior" de garantir a efetividade da proteção não

pode estar face a face com a criança e o adolescente, para com eles dialogar? Talvez a

grande dificuldade não estaria aí – o exercício do diálogo, em vez do exercício do

inquérito?

47

O exercício da autoridade legítima, o respeito pela competência e a

horizontalidade no trato com o outro ser humano, em lugar da verticalidade ou do

autoritarismo muitas vezes presentes no sistema judiciário? Se os profissionais da área do

Direito podem observar/participar de toda a "inquirição" por meio da observação propiciada

pela Câmara de Gesell ou áudio/vídeo, porque a criança não tem também o direito de vê-los

(mesmo que por vídeo) e lhes dirigir a palavra? Por que as regras processuais não podem

ser alteradas, por exemplo, para não expor crianças/adolescentes em um mesmo ambiente

que o suposto abusador? Se a preocupação maior é de fato a proteção e não o cumprimento

da formalidade dos aspectos processuais e a ação punitiva, por que não priorizar o

investimento no trabalho interdisciplinar e articulado, inclusive instalando no mesmo espaço

físico os diversos órgãos que compõem o sistema de justiça responsável pelas medidas

protetivas à criança e ao adolescente?

Tendo em vista as exigências processuais, será que esse procedimento não estaria

privilegiando a facilitação de seus trâmites, e não, de fato, garantindo a proteção à criança?

O Estatuto da Criança e do Adolescente dispõe no art. 150 que "Cabe ao Poder

Judiciário, na elaboração de sua proposta orçamentária, prever recursos para manutenção

de equipe interprofissional, destinada a assessorar a Justiça da Infância e da Juventude". E

no artigo art. 151, que "Compete à equipe interprofissional, entre outras atribuições que lhe

forem reservadas pela legislação local, fornecer subsídios por escrito, mediante laudos, ou

verbalmente, na audiência, e bem assim desenvolver trabalhos de aconselhamento,

47

Observações da prática como assistente social na área judiciária, e pesquisas a respeito, revelam a existência

de certo incômodo por parte de alguns juízes em lidar com questões que "fogem" do rito processualístico

convencional; conseqüentemente, percebe-se que são poucos os que se identificam com uma carreira voltada

para a Justiça da Infância e Juventude e se dispõem a uma atuação que leve em conta a amplitude da

realidade social e a interdisciplinaridade na condução das ações nessa esfera da Justiça.



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28

orientação, encaminhamento, prevenção e outros, tudo sob a imediata subordinação à

autoridade judiciária, assegurada a livre manifestação do ponto de vista técnico".

Portanto, estabelece a subordinação administrativa da equipe técnica ao juiz de

Direito titular da Vara, assegurando, como não pode deixar de ser, a autonomia técnica aos

profissionais, os quais, na maioria das Varas da Infância e Juventude que cumpre esta

disposição do ECA, são da área do Serviço Social e da Psicologia.

Como profissional que goza de autonomia técnica no exercício de suas funções,

direcionada por competências, atribuições, direitos e deveres estabelecidos em princípios,

prerrogativas e saberes inerentes à área de formação, o assistente social deve atuar com

competência ético-política e técnica, posta pelo projeto profissional, em todos os campos e

áreas de trabalho nos quais se inclui, e com demanda cada vez mais ampliada, a área

Judiciária. Um projeto que estabelece direção ao trabalho pautada em princípios como

liberdade, democracia, defesa dos direitos humanos e da justiça social.

O projeto profissional é composto pelos fundamentos teórico-metodológicos, ético-

políticos e técnico operativos, sendo esses últimos parte importante para a execução das

atividades pertinentes à profissão; todavia, as técnicas em si não garantem a ultrapassagem

da aparência dos fenômenos, não garantem que se estabeleça o conjunto das

determinações que os constroem. O projeto profissional põe-se "a partir de necessidades a

serem satisfeitas, para as quais os agentes estabelecem finalidades, definem os meios mais

adequados, determinam o modo de operar. (...) os agentes profissionais, enquanto

desenvolvem uma atividade, não são apenas técnicos como também críticos, já que o

domínio do instrumental requisita-lhes um conhecimento das finalidades e das formas de

alcançá-las, e estas não se encerram na razão de ser do Serviço Social. Antes, incorporam a

razão de conhecer a profissão, suas condições e possibilidades" (GUERRA, 1998, p. 169).

No processo de trabalho, é necessário que o assistente social estabeleça a

articulação entre objeto, meios, atividade e finalidades, os quais se reportam, primeiro, ao

projeto ético-político e teórico metodológico da profissão (conteúdos) e, secundariamente, à

natureza e a determinantes institucionais. Se o poder-saber está relacionado à liberdade e à

autonomia profissional, significa que ele se apresenta também "como possibilidade de

escolha, de definição entre alternativas de ação"

48

. A escolha dos fundamentos que

direcionam a ação se dá a partir de determinados interesses, com determinadas finalidades.

Isto é, a escolha dos meios relaciona-se diretamente aos fins.

48

RIOS, Teresinha A. Ética e competência. São Paulo: Cortez, 1993, p. 40.



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29

Pergunta-se, então: quais são os fins, do ponto de vista da profissão, ao atuar em

DSD? Subsidiar a constituição de prova judicial com vista à punição do(a) acusado(a)?

Garantir o direito de proteção e não-revitimização da criança e/ou adolescente? E quais as

implicações que essa "metodologia" de trabalho terá na vida desses sujeitos? Que

responsabilidade o assistente social tem nessa constituição de prova? O Judiciário busca a

"verdade" dos fatos ou da situação, para julgar com justiça. E qual deve ser a participação do

assistente social na construção dessa verdade? Ele tem clareza de que a "verdade" é

histórica, construída socialmente, portanto, não constatada pontualmente, por meio de uma

inquirição judicial?

Nesse sentido, é importante a reflexão de que o espaço da prática profissional

cotidiana é a esfera da realidade que mais está sujeita à alienação, conforme Heller (1985, p.

37). Alienação que, se dominar esse cotidiano, vai favorecer a cristalização de modos de

pensar e agir, impossibilitando mudanças. Conforme apontado em proposta que pauta o

projeto de formação profissional do assistente social, trata-se de um processo econômico,

social, cultural e político em que o ser humano aliena-se em relação "aos produtos de sua

atividade e à própria atividade". Assim, ao ser produzido pelas instituições sociais, esse

processo faz com que "os sujeitos sociais apareçam como objetos submetidos a um poder

institucional que prevalece como força exterior, superior e natural aos próprios homens, e

não como criação destes" (CADERNOS ABESS, 1997, p. 41) – o que implica a limitação da

liberdade e da criatividade.

Considerando essas questões e que o Serviço Social no campo das práticas

sociojurídicas – e, no caso, na área judiciária, que compõe esse campo – se põe no espaço

contraditório entre coerção, controle, disciplinamento e intervenção pautada pelo acesso,

pela garantia e pela efetivação de direitos, pondera-se a seguir a respeito de aspectos

importantes relacionados à proposta do Depoimento sem Dano e à participação do

assistente social em sua execução.

Sem a pretensão de serem conclusivos, esses apontamentos se propõem a contribuir

com o necessário debate, que não se deve ater à categoria dos assistentes sociais, para

avaliar principalmente: garantem-se ou violam-se direitos da criança e/ou do adolescente

nesse tipo de "metodologia"? A participação do assistente social fere a autonomia

técnica/princípios éticos-profissionais?

a. DSD – sem danos ou mais um dano?



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30

A proteção integral à criança e/ou ao adolescente supõe diversos aspectos, os quais

incluem as suas condições/relações familiares, processo de socialização, acesso a direitos

fundamentais e sociais e, inclusive, seu direito a serem ouvidos quando, como neste caso,

são vítimas de violência. Portanto, a pontualidade de um depoimento judicial, com questões

"interpretadas", por si só, não garante a proteção. Sua garantia necessita se basear, entre

outros, na intervenção interdisciplinar, realizada por profissionais com acesso à

capacitação/supervisão continuada, tendo em vista a complexidade que envolve a temática

da violência e, em especial, a violência sexual – tendo clareza do fundamental trabalho com

a família, que deve ser garantido por uma política comprometida com a efetivação de direitos

sociais.

Considera-se que não se trata de depoimento "sem danos", pois a criança não deixa

de ser exposta a uma situação em que lhe cabe a responsabilidade de acusar o suposto

abusador, quem, em muitos casos, é uma pessoa com a qual manteve/mantém vínculos

afetivos. Portanto, é de responsabilidade dela fornecer a "prova" para que o acusado seja

punido, inclusive com a prisão.

A redução de danos poderia estar não no DSD em si, mas na diminuição de vezes

em que a criança é exposta ao relatar a violência sofrida, no interior de um trabalho

interdisciplinar e integrado, preferencialmente fora do espaço do Judiciário.

b. DSD como prova criminal para punição do suposto abusador

Como se põe o dever profissional de atuar na direção da garantia e efetivação de

direitos do conjunto dos sujeitos com os quais o assistente social trabalha, inclusive do

suposto abusador, se tal profissional participa da construção de provas com vista à sua

punição? Nessa situação, como fica o compromisso com o necessário trabalho social com o

suposto abusador – via de regra, participante de um ciclo de violências familiares que se

repetem, como vários estudos comprovam? Tais indagações não discordam de que a lei

penal precisa ser aplicada nesse tipo de crime, mas levam em conta que é dever do

assistente social – não necessariamente apenas aquele que atua no Judiciário e/ou no DSD

– desenvolver ações preventivas, contribuindo para, no caso, interromper o ciclo de

violências, e não se inserir em ações punitivas.

Pode-se questionar que uma avaliação técnica, individual ou interdisciplinar, se

registrada e anexada aos autos para dar suporte à decisão judicial, também pode ser

considerada uma prova (e geralmente o é). Contudo, a avaliação técnica, direcionada pelo



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31

projeto profissional, tem como norte a proteção e a garantia de direitos e não a inquirição

com vistas à constituição de prova.

Nesse sentido, é importante ter clareza das diferenças entre a metodologia que

implica uma avaliação técnica em Serviço Social e os procedimentos para coleta de

depoimento judicial.

c. DSD e o direito da criança de não falar

Um dos grandes argumentos dos defensores do DSD é a maior facilidade de a

criança e/ou o adolescente falar se estiverem isolados do ambiente hostil geralmente

existente em uma sala de audiências. Considerando eventuais dificuldades de a criança

expor a situação – pela própria síndrome do segredo que envolve a violência sexual, ou em

razão de outros fatores de ordem emocional que a impeçam de querer falar a respeito, qual

seu direito de não falar, de não participar do DSD? Quem decide pela sua participação? Com

base em Furniss

49

, pergunta-se: qual a capacidade cognitiva, de compreensão, para a

criança "decidir" pela participação no DSD?

d. DSD e as falsas denúncias de abuso sexual

Nos últimos anos, têm aparecido na Justiça da Família e, com menor incidência,

também na Justiça da Infância e Juventude situações denominadas como "alienação

parental", ou falsas acusações de abuso sexual, principalmente em relação ao pai.

Considerando que em uma falsa denúncia geralmente a criança é induzida (ainda que nem

sempre conscientemente por parte de quem induz) pelo adulto que lhe é mais significativo

50

,

o qual, via de regra, acusa o suposto abusador, como garantir os direitos deste, quando

acusado injustamente? Como o depoimento, enquanto uma "inquirição" pontual, prescinde

de análise técnica, o que se levaria em conta se a criança relatasse uma denúncia de abuso

sexual que pode ser falsa?

e. O DSD e o sigilo profissional

49

Ver em AZAMBUJA, M. R. F. Violência sexual intrafamiliar: é possível proteger a criança? Porto Alegre: Livraria

do Advogado, 2004, e Dobke (2001).

50

A criança, principalmente na fase da socialização primária, não tem a possibilidade de "escolha de outros

significativos". (...) embora a criança não seja simplesmente passiva no processo de sua socialização, são os

adultos que estabelecem a regra do jogo. (...) Desde que a criança não tem escolha ao selecionar seus outros

significativos, identifica-se automaticamente com eles (p. 180)". Daí, em um caso de alienação parental, sua

fala possivelmente dar-se-á a partir da interiorização do "mundo" que o adulto com quem tem maior

proximidade e confiança lhe estabelecer. Ver BERGER, P. L.; LUCKMANN, T. A construção social da
realidade. Tradução de F. A. Fernandes. Petrópolis: Vozes, 1985.



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32

O Código de Ética Profissional do Assistente Social, ao dispor sobre o sigilo

profissional como medida de proteção ao usuário, refere que ele poderá ser revelado quando

em trabalho multidisciplinar, desde que se prestem tão somente as informações estritamente

necessárias. Dispõe também sobre a possibilidade de quebra do sigilo em caso de situações

graves, que poderão trazer prejuízos aos usuários.

Considera-se que no espaço do Judiciário, em especial nos casos que envolvem

violência – portanto, situações em que os sujeitos têm seus direitos violados por outros,

inclusive com risco à sua integridade física e emocional –, é inerente às funções do

profissional a revelação das informações obtidas, inclusive por meio de registros (tanto por

assistentes sociais que atuam no próprio Judiciário, como na saúde e em outras

organizações de atendimento e proteção à criança e ao adolescente). Todavia, tal revelação

deve ocorrer em sintonia com os princípios éticos profissionais, respeitando o direito do

usuário quanto a particularidades da situação que não deseja revelar publicamente. Essa

revelação se coloca enquanto recurso fundamental à proteção, no caso, da criança e do

adolescente que, muitas vezes, passam por graves violações que exigem, entre outras, a

aplicação imediata de disposição contida no ECA no sentido de afastamento do agressor,

para a preservação da vida de seres humanos em condição peculiar de desenvolvimento.

No caso do DSD, coloca-se, desse modo, uma importante questão em relação aos

limites do sigilo: a exposição da criança a uma situação de inquirição, em um ambiente

aparentemente protegido de invasão à sua privacidade, pode contribuir para que revele

particularidades de sua condição ao profissional, com vistas à garantia de seus direitos, não

necessárias ao processo judicial diretamente. Portanto, não caberia sua revelação, do ponto

de vista dos princípios ético-profissionais. Por outro lado, na ausência de um efetivo

compromisso de respeito aos limites do trabalho do outro profissional e à própria condição

especial da criança, por parte de "operadores jurídicos", como fica o direito profissional e o

direito da criança à proteção, inclusive quanto a possíveis danos emocionais? Tal situação,

pela sua complexidade, exige maiores debates e análises, inclusive do ponto de vista

jurídico.

Essa questão necessita ser pensada também em relação à subordinação

hierárquica/administrativa do assistente social ao juiz (existente geralmente no espaço sócio-

ocupacional do Judiciário). Tal subordinação não implica subalternidade, ainda que no dia-a-

dia esta possa se fazer presente, especialmente em uma instituição extremamente

hierarquizada, na qual o exercício do poder faz parte da sua "natureza".



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33

Considerando que o poder legal-institucional de condução da audiência é do juiz,

sendo este o único responsável pela apresentação das questões a serem dirigidas à vítima,

qual garantia terá o profissional a ele subordinado de fazer valer as prerrogativas

profissionais ao se negar a realizar perguntas que, do ponto de vista técnico, considere

inadequadas ao momento vivido pela criança? Enfim, qual o risco de uma possível ausência

de liberdade para direcionar a ação profissional?

Em um primeiro momento, o que poderia ser chamado de "mal-estar

51

" relacionado

ao trabalho no Judiciário refere-se a uma possível falta de autonomia no exercício de uma

profissão "liberal", em um ambiente movido por regras extremamente formais, não raro

autoritárias. Todavia, a autonomia "não é dada" pelas normativas apenas, ela se faz pela

competência – técnica, teórica, política e ética – do profissional, que lhe possibilita

segurança, capacidade argumentativa, fundamentada, para o exercício do seu trabalho.

A liberdade, portanto, é assegurada pela competência profissional com a qual se

conduz a ação. Porém, sabe-se que muitos assistentes sociais, sobretudo quando não têm a

possibilidade de atuarem apoiados na força coletiva de uma equipe integrada, podem

fragilizar-se perante desmandos institucionais e a ausência ou precariedade de recursos

para a efetivação de um trabalho digno, e serem incapazes de fazer valer direitos – seus e

dos usuários. Nesse sentido, o sofrimento no trabalho (ou estresse ocupacional) se coloca

presente em espaços sócio-ocupacionais que lidam com a tragédia humano-social em seus

limites e sem a devida atenção e incentivos para a busca de superações.

f. O DSD como inquérito e não como entrevista técnica (tarefa e não ação profissional

autônoma), e a interdisciplinaridade

Em princípio, a justificativa da interdisciplinaridade parece não caber ao DSD, na

medida em que, se o técnico for assistente social, não é solicitada a ele uma intervenção

profissional – na verdade, uma outra atribuição lhe é imposta, uma atuação como

"intérprete", ou como "porta-voz" de alguém que tem o poder de decisão em relação às

perguntas e ao destino da criança e/ou familiares.

Interdisciplinaridade supõe complementaridade, não fragmentação – o que

dispensaria o "intérprete". Atuar interdisciplinarmente implica reconhecer os óbvios limites da

área do conhecimento, o que, no caso, exige humildade intelectual, exige deixar de ser o

centro da ação processual ou, melhor dizendo, deixar a base positivista predominante na

51

Arantes trata desta questão, em relação ao trabalho do psicólogo (2008).



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leitura e interpretação da lei e do Direito para dispor-se a entender o processo de

conhecimento como construção por um sujeito coletivo.

52

A avaliação técnica por assistente social, realizada por diversos meios pertinentes ao

trabalho profissional, dentre eles o estudo social, supõe uma base teórica, técnica e ética

que possibilite que tal trabalho, de fato, contribua para a garantia de direitos dos sujeitos

envolvidos – considerando sujeitos tanto a criança e/ou adolescente vítima como o suposto

abusador. É necessário clareza de que o seu papel profissional deve dar-se estritamente de

acordo com as prerrogativas profissionais, não cabendo a ele atribuições de caráter

inquisitorial, com vistas à busca da confissão ou da "verdade" para subsidiar eventual

punição ao acusado de um crime. Evidente que uma atuação técnica competente pode

trazer elementos de ordem socioeconômica, cultural e familiar – objetivos e subjetivos – nos

quais estará presente a fala da criança e/ou adolescente contando sobre a violência

ocorrida, mas isso é decorrência de uma intervenção que deve ter como objetivo central a

sua proteção.

Para o desenvolvimento do estudo social (e também de outras formas de intervenção

relacionadas a atos de violência contra crianças e adolescentes), o profissional faz uso de

instrumentais como entrevistas, observações – na residência, no espaço do Fórum,

eventualmente em unidades de saúde, ou em outro ambiente –, pesquisa bibliográfica,

discussão interprofissional se houver possibilidade, entre outros. A realização de entrevistas

com crianças, especialmente aquelas vítimas de violência, pressupõe cuidados e

particularidades diferenciadas. Nem sempre a criança irá falar de si, de sua família e dos

acontecimentos relacionados à violência em uma única entrevista, e às vezes pode nem

falar, mesmo em uma seqüência de contatos/acolhimentos realizados – o que também

necessita ser compreendido do ponto de vista técnico, exigindo que os profissionais

dominem conhecimentos gerais relativos à sua especificidade profissional e conhecimentos

específicos sobre o foco da questão, no caso, a violência sexual. Tudo isso sem deixar de ter

clareza de que entrevistas dirigidas por profissionais de diferentes áreas (como assistente

social, psicólogo, psiquiatra) têm objetivos, meios e eixos organizativos diferentes, bem

como não destacam as mesmas informações nem fazem o mesmo tipo de análise

53

. Da

mesma maneira, entrevistas com adultos são conduzidas diferentemente daquelas

realizadas com crianças e adolescentes.

52

Ver SEVERINO, A. J. O poder da verdade e a verdade do saber. In: MARTINELLI, M. L. et al. (Org.). O uno e o
múltiplo nas relações entre as áreas do saber. São Paulo: Cortez, 1995.

53

Ver a respeito ARFOUILLOUX, J. C. A entrevista com a criança. Tradução de Analúcia T. Ribeiro. Rio de

Janeiro: Zahar, 1976.



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35

Como já visto, a violência sexual envolve traumas, estigmas e segredos, e conhecer

os meandros dessa realidade a partir da fala da criança vítima exige, essencialmente, que se

estabeleçam interação e vínculo de confiança entre ela e o(s) entrevistador(es), e que o

profissional tenha habilidades e respeito ético para garantir-lhe segurança de que seu papel

é o de alguém que atuará como apoio. A confiança no entrevistador e a percepção de que

ele a respeita são aspectos fundamentais para a entrevista, o que não se garante

simplesmente por declarações de que "existe respeito", mas, sim, pelo estabelecimento de

uma interação que explicite a disponibilidade para o diálogo, para ouvir, entender, sem

moralismos e idéias preconcebidas, sem questões que induzem a respostas, deixando claro

suas funções e os objetivo do trabalho

54

.

g. O conhecimento para a garantia e efetivação de direitos x invasão de privacidade

e/ou controle do Estado sobre a vida privada

No DSD, que verdade se busca ou se prioriza? A verdade "descoberta" pelas

disciplinas – para a garantia de direitos da criança e/ou adolescente ou para a punição do

abusador? A fronteira entre a inquirição policial para a busca da "verdade" ou da "prova" e a

investigação científica para esclarecimento de uma situação pode ser tênue, daí a

necessidade do norte dado pelos princípios éticos. Uma avaliação técnica, se considerada

como uma "verdade científica", exige análise crítica, portanto, exige conhecimentos

fundamentados para não dar margem a interpretações com base em juízos de valor. O DSD,

enquanto testemunho com vistas ao processo penal do abusador, pode fugir de uma

proposta que tenha a proteção como foco, em razão de todas as implicações que esse tipo

de "inquirição" envolve, dentre elas, a responsabilidade dada à criança pela produção da

"prova" ou produção da "verdade", visando a punição do suposto abusador. Isto é, cabe a ela

a responsabilidade maior em dar conta da formalidade processual ditada pela legislação

penal. O que também pode encerrar uma violência do ponto de vista emocional – desse

modo, contrária ao seu direito à proteção integral.

Como o Judiciário é parte integrante do Estado, e com poderes para adentrar a

privacidade dos cidadãos, é importante considerar também até que ponto projetos dessa

natureza não vão atingir privilegiadamente a população que vive em situação de pobreza,

tendo em vista sua maior vinculação ao atendimento pelos órgãos públicos. Nesse sentido,

vale a ponderação de Mioto (2004, p. 50), que, ao abordar a idéia de proteção posta na

intervenção junto à população em diversos espaços de trabalho no âmbito do Poder Público,

54

Ver BENJAMIN, A. A entrevista de ajuda. Tradução de Urias Corrêa Arantes. São Paulo: Martins Fontes, 1978.



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36

ou que executam programas a ele vinculados, observa que o direito à privacidade e o direito

à proteção – pelo Estado – são colocados em choque no cotidiano da intervenção com

famílias, pois esse último, ao mesmo tempo que fornece "recursos e sustentação às

famílias", movimenta "estratégias de controle". Uma situação que se torna mais complicada

"quando se observa que a permeabilidade dos limites da privacidade familiar é diretamente

proporcional à vulnerabilidade social" (ibid.), na medida em que a família pobre está mais

sujeita às "visitas domiciliares" em situações que envolvem suspeitas de violência, por

exemplo, do que famílias que, por sua condição social diferenciada, conseguem manter sua

privacidade, solucionando "suas violências" sem torná-las públicas (idem).

8. Algumas Conclusões e Alguns Indicativos

A pesquisa possível de ser realizada para este parecer, e as reflexões a respeito,

apontam que a questão extrapola em muito o âmbito do debate interno à categoria dos

assistentes sociais, necessitando que o conjunto CFESS/CRESS articule-se em um debate

amplo sobre o tema – com o CFP/CRP, Conanda, Fóruns DCA, CNS, Legislativo etc. – para

posterior posicionamento sobre a participação do assistente social no DSD.

Todavia, ainda que prescindindo de uma análise mais aprofundada, para a qual seria

importante também ouvir profissionais que já estão executando tarefas de intérpretes no

DSD, bem como assistentes sociais que estudam e desenvolvem pesquisas sobre a

violência contra crianças e adolescentes, em especial o abuso sexual, alguns primeiros

indicativos, conclusões e indagações se colocam:

a. a atuação do assistente social como intérprete da fala do juiz na execução da metodologia

do DSD não é uma prática pertinente ao Serviço Social. A própria terminologia utilizada na

proposta deixa claro que se trata de procedimento policial e judicial, como depoimento,

inquirição etc., pertinentes à investigação policial e à audiência judicial;

b. é necessário investir na reflexão sobre essas práticas, no interior do que vem sendo

considerado uma ampliação do Estado penal (possibilidade de controle/punição pelo Estado)

em detrimento do Estado social. Essa questão apareceu no XII CBAS (2007), em sessões e

exposições/debates em algumas das mesas, constando, inclusive, da agenda final (entre

outras, a agenda da sessão temática "Justiça, Violência e Segurança Pública");

c. é necessário promover a reflexão sobre a ampliação dos espaços de trabalho no campo

sociojurídico, priorizando práticas de prevenção; os dados empíricos, as diferentes questões



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que se põem no cotidiano de trabalho; e o mapeamento da categoria nesses espaços (em

termos de números e atribuições) necessita ser mais bem conhecido, com vistas ao

estabelecimento de parâmetros de análise do trabalho que aí se processa mais próximos do

real;

d. o investimento na ampliação da formação/capacitação teórica, fundada na reflexão ética,

necessita estar em movimento constante no meio profissional. O questionamento da

participação/exposição do assistente social nesse tipo de audiência não deve ser maior do

que o necessário questionamento dos danos que podem provocar aos sujeitos, intervenções

inquiridoras e policialescas que porventura profissionais sem a devida qualificação, sem

competência para perguntar e ouvir/dialogar, e sem compromisso ético, podem fazer ao

estarem a sós com a criança e/ou seus familiares, entre quatro paredes de uma sala de

entrevistas;

e. questiona-se: por que não se prioriza um debate sobre a possibilidade e a pertinência de

projeto de lei com vistas a alterar o Código de Processo Penal, dispondo sobre a realização

de audiências interdisciplinares, após avaliação técnica, e apenas se esta avaliação concluir

que a participação na audiência não implica violência contra a criança e/ou adolescente55 ?
Por que não gravar em áudio e vídeo a audiência para anexar aos autos?;

f. e, ainda, por que não investir na criação de varas especializadas, instaladas em espaços diferenciados, com salas de audiência sem a frieza, por vezes a pompa e o rito, que impõem distanciamento do magistrado além do necessário, e com a devida formação e capacitação continuadas dos profissionais para lidarem não só com a questão da violência sexual, mas com o conjunto das demandas que requerem medidas protetivas? Nesse sentido, observa-se que o distanciamento, a frieza e o dano aos sujeitos em razão de inúmeras exposições não acontecem apenas em situações que envolvem violência sexual contra crianças e adolescentes. Por exemplo, quais as condições em que uma criança que será institucionalizada ou uma mãe e/ou pai em vias de perder o poder familiar pela entrega de um filho como decorrência da pobreza são ouvidos? São sempre ouvidos? E as peculiaridades da condição que vivenciam são utilizadas para acionar judicialmente o Estado pela ausência de investimento em políticas e programas sociais de auxílio, garantidos constitucionalmente e previstos no ECA?;

55

Existem situações da prática profissional nas quais a própria criança manifesta desejo de "falar pessoalmente"

com o juiz.



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g. por que não investir prioritariamente na política de atendimento à criança, e no interior dela, nos Conselhos Tutelares, que são o vínculo entre a sociedade e o sistema de justiça, e geralmente o primeiro ente a quem cabe a prerrogativa de aplicar uma medida de proteção à criança, em caso de violência, e também o encaminhamento ao Ministério Público dos casos de infração penal contra os direitos da criança e do adolescente?;

h. destaca-se também a importância de a categoria inteirar-se e engajar-se em ações

políticas e práticas para a implementação do Plano Nacional de Enfrentamento da Violência Sexual Infanto-Juvenil (2000)56 e, vinculado à implementação da Política Nacional de Assistência Social (PNAS), contribuir, entre outros atos, com a elaboração de diagnósticos locais da situação de violência contra crianças e adolescentes e com a participação na articulação da rede de proteção. As medidas preventivas à violência e o atendimento qualificado e interdisciplinar às vítimas precisam ser priorizados na agenda política relacionada aos direitos da criança e do adolescente;
i. importante a atenção/o acompanhamento incessante de vários projetos de lei que tramitam no Legislativo Federal e que dizem respeito direta ou indiretamente ao trabalho do assistente social no campo sociojurídico, como: mediação familiar; lei da adoção; estatuto da família; maioridade penal etc.

Para finalizar, é importante ressaltar que não se coloca em discussão neste texto a

necessária proteção à criança e ao adolescente em especial, no caso aqui tratado, quando são vítimas de maus-tratos e, dentre eles, do abuso sexual. Ser vítima de violência, na maioria das vezes provocada por pessoas de sua proximidade, portanto, pessoas com as quais mantêm vínculos, é uma experiência que deixa marcas dolorosas em sua vida, conforme muitos estudos já demonstraram. Assim, oferecer-lhes acolhimento e proteção especial, tratando-os como sujeito de direitos e de desejos, faz parte dos deveres dos profissionais que lidam com eles, em especial, no caso, o assistente social.

Da mesma maneira, as posições ou indicações aqui assinaladas não compactuam

com atitudes corporativistas, que visam manter privilégios ou fragmentação da ação,

incompatíveis com o trabalho interdisciplinar e com a busca coletiva de efetivação de

direitos. Entretanto, recorrendo a José Paulo Neto

57

, importa defender, sim, um

56

Aprovado em 2000, tem como objetivo geral "estabelecer um conjunto de ações articuladas que permita a

intervenção técnico-política e financeira para o enfrentamento da violência sexual contra crianças e

adolescentes".

57

Em debate sobre Tìtulo de Especialista, 2004.



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39

corporativismo na direção da qualificação da intervenção, da busca de condições e de

qualidade do trabalho – para o profissional e para a população.



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